O que vai acontecer a seguir? Modestamente não sei
Admiro quem já consegue antecipar o que acontecerá quando sairmos deste parêntesis de tempo em que estamos socialmente isolados, economicamente quase paralisados e psicologicamente condicionados pela pandemia e as respostas que a comunidade internacional de modo quase consensual prescreve.
Não sabemos se o vírus vai sofrer mutações que o tornem mais assassino, continuar a conviver connosco até que a medicina o consiga vencer ou, como outros seus antecessores, simplesmente desaparecer em pouco tempo. E sem saber se estamos a prepararmo-nos para uma mudança de hábitos que dura um semestre, uma década ou, como aconteceu com a Sida, pelo menos uma geração, todas as especulações me parecem do domínio da ficção científica.
São, pois, tempos anormais estes. O que deveria levantar questões que não vejo equacionadas nas respostas que se procura em muitos domínios da ação política e da vida social. Há uma espécie de duplicidade entre a proclamação da anormalidade, com a infodemia que nos leva a ter conferências de imprensa diárias, amplamente difundidas, em que basicamente a novidade única é a mórbida fetichização das curvas estatísticas e a busca de respostas políticas para os problemas agudos dentro dos instrumentos que já conhecíamos e que são remendados, aligeirados aqui, suspensos acolá, mas não resultam da imaginação de uma nova situação. Não há ainda nenhuma nova política estrutural e nenhuma inovação, apenas reação de emergência no quadro mental anterior.
Há já, dois grandes sucessos, em que triunfámos sobre a ficção distópica das pandemias. Nem tivemos disrupções significativas na cadeia de abastecimento de bens essenciais, nem motins, perturbações da ordem pública, comportamentos selvagens de sobrevivência de hordas de primatas. Um desses sucessos deve ser creditado à boa organização do Estado e ao bom funcionamento da economia. O outro à nossa civilização. Afinal estamos a ser humanos, o que não é uma má notícia.
Há também um efeito económico e social devastador de curto prazo. A OCDE estimou que a paragem da nossa economia nos está a retirar neste momento um quarto do PIB e que em todos os seus membros essas perdas andam numa banda que varia entre os 15% e os 35%. As projeções mais otimistas que vi, que são as do Banco de Portugal, falam de perdas de 3,7% do PIB este ano e muitos economistas estão bastante mais pessimistas do que isso. Ainda mal saímos de uma enorme crise e a nossa resiliência está de novo posta à prova. Num tecido empresarial pouco capitalizado, com enorme densidade de micro, pequenas e médias empresas, que dependem dos fluxos de caixa para cumprir as suas obrigações, só podemos esperar que esteja em marcha um processo lento de dificuldades que hão-de conduzir a falências em série mais tarde, que temo que, dados os atuais incentivos à economia, sejam acompanhadas de pilhas de dívida ao fisco e à segurança social. O governo faz o que pode para suster a força das águas, reforçando os diques existentes e, se for crente, reza. Mas tem certamente noção da fragilidade dos seus instrumentos.
Devemos esperar que o lay-off simplificado contenha a vaga de despedimentos dos trabalhadores com contratos sem termo. Cumulativamente, o diferimento das obrigações contributivas das empresas, fornece um balão de oxigénio. Mas não podemos por todas as fichas na boa fé de empresários e no sucesso empresarial nestas circunstâncias. Embora em contracorrente com as preocupações que ocupam o espaço mediático, pergunto-me o que acontecerá aos trabalhadores cujas contribuições para a segurança social estão a ser retidas e os descontos para o IRS a ser feitos e nunca venham a ser entregues porque as suas empresas faliram no fim deste processo, já que a ausência de contribuições é sobre os seus direitos que impacta e o não pagamento de impostos sobre as suas obrigações que se reflete.
Mas há preocupações mais urgentes, nomeadamente as que se prendem com a atipicidade laboral com que nos confrontamos e para a qual a proteção social ainda não tem respostas adequadas. Assim como, se somos civilizados, não podemos esperar que não haja abusos e descobrimo-nos na área da proteção dos direitos laborais com uma Autoridade das Condições de trabalho com operacionalidade reduzida. Já aqui falei nos riscos de desproteção e não vou voltar a esse assunto. Apenas acrescento que quem recorrer ao RSI tem que esperar pelo menos um mês depois de perder o rendimento anterior, provavelmente três, para que os efeitos desse rendimento deixem de se repercutir totalmente, a que se soma pelos dados conhecidos, mais um mês e meio até que a primeira prestação seja paga. Lá para setembro voltará a estar minimamente protegido.
Mesmo que o vírus subitamente se suicidasse e desaparecesse amanhã, demoraríamos muito tempo a retomar os níveis de atividade, consumo e comércio de antes. Mas quanto mais tempo passar, mais gigantesca será a tarefa e mais difícil imaginar os recursos financeiros para o conseguir.
Devíamos poder contar com a Europa, mas se não bastasse o insucesso do Eurogrupo, o facto de a Comissão Europeia nem neste momento perceber que erra o diagnóstico quando indica como um problema estrutural de Portugal os gastos com saúde e nos insta a poupar neste sector diz bem do quadro mental que ainda impera. Por enquanto só podemos esperar algo como mais do mesmo, ainda que com umas aberturas conjunturais de compaixão. E mais do mesmo não nos vai resolver nenhum problema da nova estrutura em que estaremos no dia um depois do vírus.
É a rigidez de raciocínio de quem dirige a economia, os países, as instituições internacionais que mais preocupa. Por todo o lado vejo a tentação de embrulhar num discurso de que tudo vai mudar, medidas que subavaliam as possíveis mudanças em curso - coisas que vão da simples manutenção de exames nacionais que estavam feitos em janeiro a recusar novas prestações sociais, no plano interno e da recuperação do risco moral às guerras por máscaras e ventiladores à escala internacional.
O que vai acontecer a seguir? Modestamente não sei. Mas se estivermos, como parecemos estar, numa das junturas históricas que os especialistas de políticas públicas das escolas neo-institucionalistas consideram ser o momento em que se produzem mudanças estruturais, há uma coisa que sei, que é mesmo a única que sei. A generalidade dos protagonistas de hoje não tem golpe de rins para ela e soçobrará, levando consigo instituições importantes e ideias generosas.
Como tenho em mim o otimismo antropológico da esquerda, acho que a humanidade encontrará melhores respostas. Mas a costela cética recorda-me que o século XXI reagiu até agora a todos os choques com movimentos recessivos da democracia e da liberdade. A história, no entanto, é aberta, como todos sabemos.