Uma democracia suspensa no tempo

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Enquanto a crise do euro mudou o xadrez partidário em quase todos os países europeus, Portugal apresenta-se como uma notável e importante exceção. Ao mesmo tempo, sabemos pelos inquéritos de opinião, que há uma enorme insatisfação com os atuais partidos. Apenas uma percentagem muito baixa dos portugueses tende a declarar-se contente com os partidos representados na Assembleia da República. Num artigo anterior, comecei por avançar com o aparecimento do Bloco de Esquerda bem antes da crise de 2007 e o seu papel no sistema partidário nos últimos 20 anos. No meu último artigo, enumerei os enquadramentos institucionais que penalizam o aparecimento de novos partidos. E usei o exemplo do PRD, um produto da austeridade de 1983-1985, para apoiar a tese de que, sem um base de poder efetiva (como Belém), é muito difícil ter um partido novo ao centro com uma vocação eleitoral expressiva ao estilo Macron.

Se, nos restantes países europeus, a crise e as mudanças sociais e económicas do século XXI mudaram o xadrez partidário e a representação partidária nas instituições democráticas, em Portugal, a única alteração importante é a crescente abstenção mais votos brancos e votos nulos (vamos chamar ABN), aproximando-se já dos 50% nas últimas legislativas. Parafraseando a ideia do "Portugal suspenso no tempo", introduzida pelo filósofo Miguel Real num importantíssimo livro recentemente lançado, Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa (Planeta Manuscrito, 2017), caracterizaria a nossa atual situação de "democracia suspensa no tempo".

Estamos objetivamente numa fase de uma transição longa e demorada. O projeto da prosperidade europeia, iniciado em 1976, fechou-se em 2011. Como defende Miguel Real, no fundo, a nossa adesão à CEE foi o culminar de 200 anos da ambição de aproximar Portugal da Europa, centro do desenvolvimento económico mundial. Esta ambição, prosseguida por vários regimes políticos, em formas e medidas distintas, correspondia à tese de que esta seria a única forma de superar o declínio imperial que vinha acontecendo desde o século XVI. Na verdade, introduzida a democracia, o atual regime legitimou-se, década após década, no sonho europeu. Em 1986, como por milagre, finalmente estava realizada a grande ambição das elites portuguesas. De certa forma, era o fim da história! Tínhamos chegado lá. Mas, em 2011, descobrimos que, afinal, era apenas mais uma tentativa e mais um falhanço (em rigor, já vínhamos a desconfiar disso desde o famoso pântano de Guterres), como tinha sido tantas vezes no passado. O delírio europeísta dos anos 80 e 90 deu lugar a uma enorme frustração, na primeira década deste século. Agora, na segunda década do século, de alguma forma, sabemos que estamos adiados por outra geração e estamos conformados com isso. Portugal, mais uma vez, falhou completamente o seu sonho "desenvolvimentista". Fechámos, pois, um ciclo. Mas não abrimos outro. Estamos, pois, suspensos no tempo, em transição para qualquer coisa que ainda não conhecemos, nem percebemos. E, de certa forma, ABN torna-se a opção mais natural para partes significativas da população, nomeadamente aquelas que viverão o novo ciclo no futuro (segundo alguns estudos publicados depois das legislativas de 2015, ABN para a geração abaixo dos 30 poderá estar acima dos 60%).

Estaremos inevitavelmente suspensos no tempo enquanto persistir a transição. Não sabemos quanto tempo vai durar. Não sabemos até onde subirá a abstenção. Não sabemos quanto mais tempo durará o atual xadrez partidário. Mas Portugal é o país do sebastianismo, não do institucionalismo. Portanto, na minha perspetiva, a mudança virá, inevitavelmente, de fora dos partidos e das instituições. E prometerá o líder que, finalmente, mais uma vez, cumprirá o nosso projeto nacional. Foi sempre assim (podemos até dizer que o grande problema das eleições de 2015 foi que, nem Passos nem Costa conseguiram assumir o papel "sebastiânico" que ambos reclamavam para si).

Tendo a esquerda três partidos com representação parlamentar (já não estou a contar com o PEV e o PAN), parece normal que a mudança do xadrez partidário, se e quando acontecer, venha do centro ou da direita (por alguma coisa, projetos como o Livre e o Agir não encontraram eleitores). Mas tenho muitas dúvidas de que a mudança no xadrez político se possa fazer pelo lado liberal como alguns desejam. Não só o pensamento liberal sempre foi absolutamente minoritário, como evidentemente prevalece um enorme consenso na sociedade portuguesa sobre o modelo do Estado dirigista. O "pombalismo" domina a cultura política portuguesa há 200 anos, usando mais uma vez um termo de Miguel Real. Naturalmente, não creio que vá desaparecer agora.

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