Regresso ao tema do meu último artigo. Enquanto a crise do euro mudou o xadrez em quase todos os países da UE15, Portugal apresenta-se como uma notável exceção. É verdade que apareceu o Bloco de Esquerda em 1999, mas foi uma realidade relevante bem antes da crise de 2007 e teve um crescimento, embora com altos e baixos, fundamentalmente demorado. Como defendi na semana passada, a sua passagem de partido de protesto a uma espécie de versão local dos Verdes alemães levou mais de uma década. Por outro lado, existem enquadramentos institucionais que penalizam o aparecimento de novos partidos. Nomeadamente uma legislação eleitoral que desfavorece novos movimentos (proibindo-se listas de independentes e complicando juridicamente a formação de um novo partido), o financiamento público (que favorece descaradamente os partidos instalados), o acesso à comunicação social (preponderância de comentadores e analistas dos partidos instalados ou as habituais peripécias pré-eleitorais sobre debates que pretendem apenas pressionar as escolhas tradicionais), presença asfixiante dos incumbentes em todas as instituições do Estado (tipo Comissão Nacional de Eleições). Contudo, esta última explicação (conjuntamente com a elevada abstenção e o número muito significativo de votos brancos e nulos) aponta para a possibilidade de existir já um eleitorado potencial para um movimento político que saiba, pacientemente, superar os enquadramentos institucionais.
A comparação da crise 2010-2014 com a crise 1983-1985 tem sido naturalmente habitual na opinião económica nos últimos anos. Ainda há pouco tempo, Helena Garrido, num interessante artigo, defendia a tese de que o atual governo, no fundo, beneficia do ajustamento feito pelo governo Passos, num cenário que faz lembrar a forma como o governo Cavaco beneficiou do ajustamento realizado pelo governo do Bloco Central. O PS relega hoje o PSD para uma longa travessia no deserto, tal como o PSD relegou o PS em 1985 (durou até 1995).
Contudo, há uma grande diferença política entre os dois resgates. Desta vez, não mexeu no xadrez partidário. Mas, em 1985, mexeu, e mexeu muito. A crise de 1983-1985 gerou um novo partido no centro do sistema partidário, o PRD. Nas legislativas de 1985, obteve um pouco mais de um milhão de votos, 18% e 45 deputados. O partido da austeridade, o PS, perdeu cerca de 800 mil votos e 44 deputados (o resto dos votos vieram fundamentalmente dos comunistas, que perderam mais de 100 mil votos e 6 deputados). O discurso do PRD captou de forma efetiva o eleitorado de esquerda muito descontente com a austeridade socialista. Inspirado pelo Presidente Eanes, mas liderado por Hermínio Martinho e Manuela Eanes nas legislativas de 1985 (decididas pelo próprio Presidente Eanes no termo do seu segundo mandato), propunha-se "moralizar a vida política nacional" (a corrupção já era tema). O PRD apresentava novidades parlamentares - não tinha disciplina parlamentar, exceto para leis fundamentais, como o Orçamento do Estado -, juntava gente descontente com os aparelhos partidários (Medeiros Ferreira, Jorge Miranda, etc.) e defendia a regeneração do regime com a participação de capitães de Abril (Marques Júnior, etc.). Apesar dos bons resultados eleitorais do seu candidato presidencial, o ex--socialista Salgado Zenha (com 1,2 milhões de votos), não evitou a eleição de Soares em 1986. Cometeu o erro de apoiar o governo minoritário de Cavaco sem contrapartidas claras (rejeitando mesmo participar no governo). A tentativa de emendar essa profunda falha estratégica levou aos disparates de 1987 (derrubar um governo popular sem uma maioria alternativa), que eventualmente acabaram com o próprio PRD (apenas 280 mil votos e 7 deputados nas legislativas de 1987). A médio prazo, percebe-se que o papel do PRD no xadrez partidário português foi de mera transferência de um eleitorado socialista antes de 1985 para o PSD em 1987.
Penso que o caso do PRD ensina duas coisas importantes. Primeiro, sem uma base real de poder (Belém, naquele caso), é muito difícil superar os apertados enquadramentos institucionais. Em 2015, não houve nenhum novo partido ao centro (que captasse os descontentes do PSD, cerca de 700 mil votos), porque nenhuma base real de poder estava interessada nisso. Consequentemente, desta vez, o xadrez partidário não mexeu. Acrescentaria que, precisamente pela combinação da ausência de uma base real de poder e dos apertados enquadramentos institucionais, não acredito grandemente em novos partidos nos próximos tempos (talvez, neste momento, um projeto de Rui Moreira no Porto fosse a hipótese com mais sucesso). Segundo, o PRD era um partido fundamentalmente personalista. Criado pelo general Eanes, a partir de Belém, morreu no dia em que o general saiu do partido. O culto personalista facilita a base inicial de poder (que, eventualmente, explica o sucesso imediato de um novo partido como foi o caso do PRD), mas condiciona muito o processo de maturação eleitoral do novo partido. Não me parece que um partido meramente personalista possa ser uma receita de futuro.