Nuno Artur Silva
30 setembro 2019 às 13h31

Em campanha pelas campanhas

Nuno Artur Silva

É muito fácil dizer mal das campanhas eleitorais. Elas são o momento em que os políticos apresentam as suas políticas como uma epopeia que, na cacofonia indiferenciada da sociedade do espetáculo, acaba por, fatalmente, se parecer mais como uma farsa. Hoje em dia as campanhas não se limitam a cartazes, a comícios e a ações de rua com soundbites e oportunidades fotográficas ou videográficas para as televisões. A televisão é ainda o palco principal dos acontecimentos, mas as redes sociais alargam e determinam a disseminação das declarações e das ações e reações de campanha.

O meio continua a ser a mensagem, só que o meio hoje é múltiplo, diverso, disperso. Continua a haver mediadores, mas eles, jornalistas e comentadores, não têm a importância que antes tiveram, relegados para um papel menos decisivo pelos algoritmos das redes sociais que determinam, com a eficácia da ciência dos dados, a colocação das mensagens nos perfis dos eleitores nas diversas redes de forma customizada.

Os tempos de antena nas televisões só são relevantes fora da televisão, se forem tornados virais pelas redes sociais (tal como a informação, o jornalismo, são cada vez mais difundidos fora do contexto dos jornais e das televisões e mais relevantes pelo número de pessoas a que chegam por essas vias).

A crise dos mediadores tradicionais - jornalistas, mas também sindicatos ou as próprias estruturas partidárias - traz, como diz o chavão, novos desafios.

A questão central das eleições nas democracias é: quem não estiver bem informado em quem vai votar? Hoje não faltam exemplos de políticos eleitos por eleitores manipulados por fake news cirurgicamente colocadas nos seus perfis das redes sociais.
O método não é novo. Caciques e igrejas de várias espécies sempre o fizeram por contacto direto nas comunidades locais. A escala e a precisão que os dados e os algoritmos das redes sociais permitem é que são de um alcance e de uma eficácia nunca antes verificados.

A verdade é que sempre houve um número considerável de pessoas muito vulneráveis a processos de manipulação. À primeira vista, pode parecer que a crise dos jornais vem acentuar ainda mais este perigo. E penso que isso, numa primeira fase, pode ser uma análise certa. Mas arrisco-me a dizer que, à medida que a desorientação dos modelos de existência dos media e do jornalismo em geral se vai desvanecendo e novos caminhos vão sendo encontrados, poderemos ter um escrutínio melhor do que jamais tivemos da atividade dos políticos.

É certo que as ameaças serão cada vez maiores - veja-se o caso das deep fake, já não só notícias, mas imagens manipuladas, por exemplo, a mostrar políticos a dizer frases que não disseram -, mas os instrumentos de denúncia da mentira e a clarificação da verdade serão também mais poderosos e, sobretudo, as novas gerações nativas digitais estarão mais preparadas para as desmontar.

As campanhas eleitorais futuras poderão ser muito mais do que o que delas fazem as televisões e a sua engrenagem normativa que transforma tudo em entretenimento condicionado pelas tabelas das audiências.

A nova realidade multimédia espalhada pelas redes sociais e sobreposta a uma intervenção presencial todo-o-terreno pode trazer uma política mais séria e menos refém de modelos normativos que a obriguem a fazer o jogo dos "jornalistas de entretenimento" - e pode, ao mesmo tempo, dar espaço a que um jornalismo também mais sério e comprometido com a verdade possa ser exercido e se torne relevante.

Posso estar a ser otimista, mas há bons sinais na atual campanha eleitoral em Portugal. De forma geral, tem havido boas condições e muitas oportunidades para que os cidadãos possam ver, ouvir ou ler as propostas dos diferentes candidatos ("Vemos, ouvimos e lemos/ não podemos ignorar", escrevia Sophia).

Os debates têm sido civilizados e relativamente esclarecedores. Deve ser motivo de orgulho para o nosso país que todos os candidatos que deverão ter lugar no próximo Parlamento sejam, da esquerda à direita, inegavelmente democratas. E que os partidos de cariz nacionalista autoritário ou neofascistas não tenham grande expressão.
É um excelente sinal de maturidade democrática que o debate não esteja radicalmente polarizado e que a discussão não seja substituída pela agressividade fanatizada.

Até quando? Poderemos resistir aos movimentos transnacionais de extrema-direita que fomentam essa polarização populista e violenta das sociedades?

Tem havido tentativas: já temos um "jornalismo" populista e justicialista, aliás em compadrio com setores do sistema judicial, que é sempre um caminho aberto para o surgimento de candidatos que se apresentam como não políticos, ou contra os políticos "do costume". Se lermos as caixas de comentários de jornais ou de determinados posts, podemos ver que o espírito de claque, o hooliganismo político e os mecanismos da justiça popular já estão disseminados.

No debate público, contudo, esse comportamento ainda não tem grande expressão. De forma geral, podemos dizer que vivemos num espaço público mediático saudável, ainda que frágil e ameaçado por falta de financiamento e de autonomia dos projetos jornalísticos.

Falta também muito para que ele responda com profundidade e consequência aos problemas do nosso país. Por exemplo, é preciso que políticos - e jornalistas - ponham o tema ambiental de facto na primeira linha da agenda e não como fazem com a cultura, de forma oportunista colada à pressa nos programas e nas intenções.

E é preciso que discutam seriamente o principal problema português e o único que não teve uma verdadeira reforma depois do 25 de Abril: o sistema de justiça (não está a ser discutido de todo).
Os outros temas essenciais, mais ou menos, estão a ser discutidos de forma talvez não muito aprofundada, mas civilizada, nesta campanha. E, contrariamente ao que é costume, quero deixar por isso um elogio a um grupo significativo dos nossos políticos e jornalistas.

As condições à nossa volta têm sido favoráveis às derivas antidemocráticas. Cabe-nos a todos resistir e exigir - aos políticos, aos jornalistas e aos nossos concidadãos que estejam à altura dos tempos difíceis que atravessamos.