Amigo é para guardar

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Nem só de literatura se fazem os livros, mesmo os de Jorge Amado e de José Saramago, gigantes cada um por si, ainda maiores depois de nos aproximarmos desta correspondência que os uniu, na sequência de uma amizade tardia mas tão intensa que quase todas as cartas e faxes juntam, à troca de informações, de ideias, de carinhos, cuidados e elogios mútuos, as respetivas mulheres - Zélia Gattai e Pilar del Río - e até as famílias. A questão da legitimidade da publicação nem se põe, diante do que podemos aproveitar nesta iniciativa conjunta da Fundação Casa de Jorge Amado e da Fundação José Saramago: hoje, fisicamente desaparecidos ambos, aquilo que decidiram dizer um ao outro, desde as considerações de carácter político até à expectativa por um Nobel (que chegaria às mãos do português, já depois de encerrada a correspondência, por causa da saúde do escritor baiano) para a língua portuguesa, que fazia deles candidatos naturais, desde os sucessivos planos para encontros, tantas vezes adiados em função de agendas carregadas, aos festejos por um prémio, o Camões, que, de forma consecutiva, os uniu ainda mais. Jorge Amado foi distinguido em 1994, Saramago no ano seguinte. O que explica cabalmente os festejos que, na primeira ocasião, se estenderam até Lanzarote e, na segunda, fizeram correr champanhe em Salvador da Bahia.
Ficamos a saber, através de deliciosas missivas, que envolvem requintes de linguagem só ao alcance de magos da palavra, o papel crucial de Jorge Amado na eleição de Saramago para a Academia Universal de Letras. Coube ao autor de Capitães de Areia a proposta (em que juntou também os nomes de Oscar Niemeyer e de Jack Lang) e a "campanha", que só não conheça os meandros intrincados destas instituições poderia julgar desnecessária. Depois, juntaram-se ambos, de forma empenhada, na candidatura de Eduardo Lourenço à referida Academia. Ficamos a saber do profundo respeito de Saramago por Miguel Torga, apesar de, mesmo num país com este tamanho, nunca se terem encontrado. Ficamos a saber da consideração, ainda que distante, de Jorge Amado por João Cabral de Melo Neto e da amizade que o ligou a Nélida Pinõn, um e outra nomes fundamentais das letras do Brasil. Mas, em simultâneo, acompanhamos as preocupações de Saramago com a saúde do seu parceiro de além-mar, primeiro com sérios problemas na visão, depois com o coração a ceder. Nesse momento, escreve ao amigo o autor de O Ano da Morte de Ricardo Reis: "Uma torre dessas não cai assim." Tinha razão, mais uma vez.
Vivemos uma época em que os comodismos eletrónicos suspenderam o hábito das cartas. Atrevo-me a dizer que, entre personalidades como estas, mas também entre amigos mais comuns, deveria haver uma recomendação universal para que o género epistolar voltasse à ordem do dia, e com alguma regularidade. No caso das figuras deste calibre, há sempre um pormenor, uma palavra, um desabafo, que virá sempre enriquecer quem as leia, mesmo que isso aconteça - como aqui - anos depois. No que toca ao amigo "humano comum", as cartas podem relembrar e ressuscitar, em caso de perda. Ora por mais que se diga tudo, e repetidas vezes, sejamos honestos e reconheçamos que a palavra escrita ganha outra força, até porque perdura quando cai o silêncio. Os amigos faltam-nos sempre, mesmo quando nunca nos falharam. Eu sinto a falta das cartas que, por preguiça ou turbilhão, não cheguei a escrever e também, muito, das que não recebi. E, afinal, trata-se apenas de emendar a mão.

Com o Mar
por Meio
Jorge Amado
e José Saramago
Ed. Companhia
das Letras
120 páginas
PVP: 14,64 euros

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