Uma nova vaga de escritoras recria episódios da nossa história

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O título do mais recente romance de Isabel Rio Novo é tão trágico como a história que conta em A Febre das Almas Sensíveis. Melhor nome para o livro seria difícil de encontrar e melhor argumento também. Finalista de dois Prémio Leya, já tinha surpreendido com Rio do Esquecimento, e agora em duzentas páginas leva o leitor num deslizar constante pela sua prosa sedutora. Que, como revela o texto na contracapa, passa-se num Portugal da primeira metade do século XX e retrata um dos "males que assolam o país isolado e retrógrado". Não é um mal político, económico ou social, antes todos reunidos sob o chapéu temático da tuberculose.

Uma das características desta representante de uma nova vaga feminina de escritoras que tem vindo a publicar nos últimos anos, após uma presença maciça de autores apostados numa (alegada) renovação da literatura nacional, é a de utilizar a nossa história como pano de fundo da narrativa. Uma situação de que os autores masculinos vêm fugindo como da peste, vogando sob nomes de personagens estrangeiras, cenários fantasiados e questões sobre o Eu, muitas vezes desnecessárias se não tiverem uma ligação à Terra. Não a tendo, o escritor pavoneia-se com um romance etéreo, que pouco interessa aos leitores.

Isabel Rio Novo ataca de outro modo a escrita, com a recuperação de um passado em que a doença que descreve matava milhares de portugueses a cada ano, "isolados" num país "retrógrado" e abandonado pelo progresso científico e ao descaso das autoridades de um ditador bem caracterizado neste volume - sem essa ser a preocupação principal. Mais, coloca uma mulher a recolher testemunhos entre os escombros de um sanatório como voz alternativa, numa fala que se contrapõe aos que aceitam a perda da memória a troco das referidas escritas extraterrestres.

Essa mulher encontra papéis que permitem perceber parte do que se passou, mas o grande achado é o de o protagonista ser uma personagem que não se percebe a não ser lá para o final. Ou personagens a quem não se deu o valor suficiente. Isto porque a autora sabe disfarçar as fontes das páginas que se vão lendo, iludindo o leitor através de constantes acontecimentos numa família que se parece igual a muitas que viveram há décadas, mas que nunca é habitual retratar-se. A estrutura da mãe irrita, a de um filho lamenta-se, a do marido estranha-se, a dos outros filhos interessam, por serem tão diferentes e necessários à compreensão do romance. E depois existe aquela mulher que recolhe os papéis e engana o leitor até ao fim.

Outro benefício desta história é a passagem de vários tuberculosos famosos pelas suas folhas, dando a conhecer episódios também sempre calados ou colocados sob o manto do poeta trágico. Bem como as situações dramáticas de que já ninguém se lembra por serem sempre apagadas no que se tem vindo a escrever nos últimos tempos. Mesmo que às vezes a forma seja demasiado próxima de uma antiga escrita portuguesa, o conteúdo permite ultrapassar essa proximidade a uma linguagem popular romanceada, acabando por se ignorar a sensação do coitadinho.

Bem engendrado, este romance lê-se de uma única vez, o que confirma que Isabel Rio Novo domina a escrita como poucos autores são capazes de fazer nos livros que têm chegado às livrarias nos últimos anos. Não necessitando de ideias deslocalizadas pois o romance português ainda tem muito para explorar no seu próprio território. Ganha a recuperação da história e vence a história bem contada e capaz de continuar a surpreender como já se verificou com escritores que nos utilizaram como matéria-prima.

A Febre das Almas Sensíveis
Isabel Rio Novo
Editora D. Quixote
197 páginas
PVP: 14,90 euros

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