A ficção científica gostava de tratar do tema da extinção da raça humana, por norma devido a uma invasão extraterrestre. Ora, parece que estavam enganados esses profetas de um género literário que alertava para os perigos do futuro pois o que agora mais se aponta como o grande dizimador da melhor criação pós-Big Bang é o próprio homem e os frutos da sua inteligência. Isto no caso de ser capaz de criar e implantar no planeta a inteligência artificial..Talvez o suicídio da humanidade não seja assim tão fácil. Lembremos a experiência para encontrar o bosão de Higgs e o receio de que o CERN criasse um buraco negro que engoliria a Terra a partir do círculo escavado sob os arredores de Genebra. Confirmar o bosão adiantou q.b., mas milhares de cientistas asseguraram emprego eterno. A inteligência artificial é outro empregador, principalmente a melhor forma de as ciências que as universidades produziam e que ficavam eclipsadas - nem geravam empregos - perante a contrapartida que os cursos sem conhecimento tecnológico tinham, sempre um lugar na fila da frente na distribuição do orçamento. Este filão alimentado por elons musks da vida fez renascer a esperança de as universidades fora dos EUA se sentarem também à mesa do negócio com a criação de peças para o puzzle que irão permitir dar o alegado próximo grande passo da humanidade. .O medo de uma extrema rapidez da expansão da inteligência artificial sem freios, que irá criar a maior onda de desemprego, nunca vista, e uma nova forma de escravatura ainda antes de terminar o século XXI, tem sido um tema de especulação científica de especialistas e polemistas. Entre os vários ensaios que têm sido dedicados ao assunto nos últimos tempos editoriais surge já neste ano a tradução de O Mito da Singularidade, de autoria de Jean-Gabriel Ganascia, que tem por subtítulo Devemos temer a inteligência artificial? .É curiosa a primeira palavra que escolhe para abrir o livro: Iminência. Ou seja, diz o autor, tudo o que a inteligência artificial representa social e economicamente está para acontecer a qualquer momento e tal onda gigante da Nazaré, que vem do fundo do oceano discretamente, vai-se "autonomizando" até "atingir o ponto de não retorno" e confrontar a Terra com uma "catástrofe". .Segundo Ganascia, a onda tecnológica contém sérios riscos, pois as máquinas poderão ser capazes de reescrever os seus programas e de forma tão rápida que o homem não será capaz de os fiscalizar, sendo necessário garantir desde já que esse autodesenvolvimento seja inócuo. O autor tenta convencer-se de que nada no atual estado da tecnologia permite afirmar que os computadores poderão aperfeiçoar-se a ponto de ultrapassarem os seus criadores (pág. 71), mas não deixa de registar amiúde avisos como este: "Um futuro que já não precisa de nós"; "máquinas autorreprodutivas", "as grandes extinções em massa", "a grande viragem", "tecnoprofetas"... À página 147, encontra-se uma das melhores explicações sobre a razão do conflito que se aproxima: "Em poucos anos, os patrões das grandes empresas da web conseguiram mudar a sociedade enquanto realizavam capitalizações em bolsa inauditas. Tudo lhes sorri." Oito páginas depois demonstra a hipótese da ingovernabilidade próxima do mundo. .O que Jean-Gabriel Ganascia tenta demonstrar neste livro é que a inteligência artificial vai confrontar-se com o mito da singularidade e pode não sair vencedor. Recorde-se que a ficção científica prometia um futuro em que o homem pairava sobre uma civilização em que a tecnologia lhe criava o melhor ambiente possível. Coisas do passado... .De leitura agradável, há um problema com este ensaio: filosofa sobre premissas de difícil compreensão. Antes, convém passar os olhos, por exemplo, sobre os livros de Yuval Harari, Arlindo Oliveira e Pedro Domingos..O Mito da Singularidade Jean-Gabriel Ganascia Editora Temas e Debates 181 páginas PVP: 15,50 euros