Veneno na ferida

Faz hoje 135 anos o funeral de Karl Marx em Londres, que celebrará o 200.º aniversário a 5 de Maio. Esta é a justificação de um facto grotesco: a revista do Expresso de sábado passado trazia na capa uma grande foto do autor sob o título: "Marx vive. A sua obra mudou o curso da história no século XX e, hoje, até os mais céticos parecem rendidos ao homem que nasceu há 200 anos".

Nas longas dez páginas do interior existem dois interessantes textos. O primeiro, de Francisco Louçã, nova estrela do semanário, faz uma erudita descrição da carreira intelectual do revolucionário alemão. O segundo, de Luciano Amaral, chama-se "Somos todos marxistas", citação livre da célebre frase de Milton Friedman em 1965 acerca de Keynes: "Em certo sentido, somos todos keynesianos; noutro, já ninguém é keynesiano." A omissão da parte final é compreensível neste caso. O elemento chocante é que nessas longas elaborações ninguém refere o aspecto mais relevante: a tal mudança que Marx fez no século XX gerou milhões de mortos, miséria inaudita e as maiores catástrofes económicas de sempre, da colectivização da agricultura soviética ao "grande salto em frente" maoísta. É esquecimento de peso!

A qualidade e a influência da obra de Marx são indiscutíveis. Um dos maiores economistas e sociólogos, introduziu ideias decisivas: teoria das classes sociais, interpretação materialista da história (a que Schumpeter chamou "interpretação económica da história"), análise do ciclo económico, progresso tecnológico e estrutura do capital e trabalho. No essencial, o modelo de Marx é o de David Ricardo, mas levado às últimas consequências. Sobre ele o alemão constrói toda uma filosofia da humanidade, pois essa "infraestrutura" produtiva determina toda a realidade social e cultural.

Mas feitos tão notáveis eram secundários para o próprio: "Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo" (Teses sobre Feuerbach, 1845). As suas reflexões não passavam de meios para revolucionar a sociedade. Era aí que queria ser avaliado. As influências práticas do pensamento de Marx são também muito significativas, sobretudo através dos discípulos. No entanto, essa influência resulta, antes de mais, da enorme flexibilidade do capitalismo que, nascido da espontânea evolução social, sem ideólogos inspiradores, recebe contributos de todos os lados, até dos críticos ferozes. Isto é mais mérito dele do que deles.

Estes são os temas dos artigos, e têm toda a razão. Mas a herança de Marx não pode ser desligada do que foi realizado em seu nome. Os regimes marxistas, esses não espontâneos mas criados por ideólogos, geraram das piores desgraças da história. Pode dizer-se que ele não tem culpa e que tais sistemas foram distorções, mas a raiz do mal está indubitavelmente no processo básico e fundamental de todo o modelo: a dinâmica da luta de classes. "A história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes" (Manifesto do Partido Comunista, 1848). Esta ideia é um dos maiores crimes da humanidade.

Primeiro, por ser extraordinariamente plausível. Toda a gente reconhece a validade da tese. Os diferentes níveis sociais têm sempre fortes razões de queixa uns dos outros. Mas, em segundo lugar, essa plausibilidade esconde outra verdade essencial: eles não podem viver uns sem os outros. A sociedade sem classes não tem a menor plausibilidade, como os regimes marxistas se encarregaram de confirmar. Numa sociedade com classes, a sobrevivência exige cooperação. A tese da inevitabilidade da luta de classes bloqueia essa harmonia.

A tentação em que os comunistas caíram é compreensível e quase inexorável. Perante um desequilíbrio que gera um confronto, é fácil denunciar, repudiar e atacar, procurando suspeitos e castigando culpados. Difícil é tentar acalmar os ânimos, procurar consensos, construir equilíbrios. O caso das classes é paralelo ao de países, raças, clubes e até à imemorial guerra dos sexos, agora incendiada pelo #MeToo, como se existisse alternativa à coesão entre mulheres e homens.

Marx encontrou uma ferida nos inúmeros mal-entendidos e confrontos que deflagram entre classes, nas relações peculiares do capital com o trabalho. Afirmando a luta de classes como natural e fatal, deitou veneno nessa ferida. Na sua bem-intencionada busca de justiça para os oprimidos enveredou pela alternativa radical que realmente impedia a solução. Ignorou a evidência de que o trabalho precisa tanto do capital como este daquele. Nunca considerou a única opção razoável perante uma chaga: usar remédios e aplicar curativos.

O Manifesto tinha razão: havia um espectro pela Europa, e esse espectro era o comunismo. Várias gerações tiveram de ser horrivelmente sacrificadas até se conseguir exorcizar tal espectro. O respeito por todas essas multidões deveria impedir a ligeireza no tratamento da personagem. Marx, como Hitler, não vive. Não somos todos marxistas.

Professor universitário

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