No país de Sikêra Jr.

Jair Bolsonaro aproveitou-se da facada para fugir dos debates com os outros candidatos antes das eleições de 2018. E, já eleito, só aceita ser entrevistado em canais amigos ou responder a jornalistas à saída do Palácio do Alvorada sob a proteção de uma claque de alucinados.

Ficou na história a corrida do deputado Eduardo Bolsonaro pelos corredores do Congresso Nacional para evitar a imprensa a meio de uma crise no seu partido de então, o PSL, em outubro do ano passado. No sprint, de tão assustado, esbarrou mesmo em meia dúzia de pessoas. Um segurança seu, para conseguir acompanhar o ritmo Usain Bolt do chefe, deixou até cair o telemóvel.

Carlos Bolsonaro vive atrás de um computador a arrasar reputações de ex-aliados do pai, como os deputados Joice Hasselmann, Alexandre Frota ou Julian Lemos, que, em resposta, o apelidam de "cobarde", "frouxo", "bunda mole" e outros adjetivos impublicáveis.

O amigo da família Fabrício Queiroz, ao tornar-se figura central de um esquema milionário de desvio de dinheiro público do clã, escondeu-se por meses numa casa do advogado presidencial.

O criminoso Adriano da Nóbrega, que tinha mãe, ex-mulher e outros familiares espalhados pelos gabinetes do clã Bolsonaro, que foi defendido por Jair em discurso no Câmara dos Deputados e que foi homenageado com medalhas pelos seus filhos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, também passou os últimos momentos da vida, até ser abatido pela polícia, na condição de foragido.

Há aqui um padrão a que sobrava apenas o senador Flávio Bolsonaro. Já não sobra.

Depois de Paulo Marinho, empresário patrocinador da candidatura de Jair Bolsonaro à presidência, ter afirmado que Flávio foi avisado por uma fonte policial da operação em torno do tal esquema de corrupção de Queiroz e da sua família, o Ministério Público decidiu marcar uma acareação entre ambos nesta semana. O senador... não compareceu. Segundo a sua defesa, tinha compromissos inadiáveis no Amazonas.

E que compromissos eram esses? Cantar e dançar.

À mesma hora da acareação no Rio, o senador Flávio e o irmão Eduardo participaram na sede da TV Crítica, emissora local de Manaus, de uma coreografia a debochar maconheiros (consumidores de canabis) e com conotação sexual (homofóbica, claro).

Entre a meia dúzia de homens abraçados na execução do número musical destacam-se, além dos irmãos Bolsonaro e de um outro com uma redundante cabeça de burro, o membro do Governo Gilson Neto, que é, em paralelo, vocalista e acordeonista da banda de forró Brucelose - sim, é aquele que cantou uma Ave Maria em homenagem aos mortos pela covid-19, durante uma live de Jair Bolsonaro com o constrangido ministro da Economia Paulo Guedes, que se tornou piada global.

No grupo, destaca-se também o anfitrião do miniconcerto: Sikêra Júnior.

Sikêra Júnior pertence uma profissão exclusiva de países de Terceiro Mundo que está em alta no Brasil desde a eleição de Bolsonaro: é apresentador de um programa sobre crime (daqueles que jorram sangue do ecrã para as salas de casa dos telespectadores) em que, após a exibição das reportagens, apela à pena de morte e à justiça dos agredidos pelas próprias mãos, entre pausas dramáticas, olho na câmera e dedo em riste.

Em 2016, a sua fama local tornou-se nacional ao prever a morte de todos os "maconheiros" (uma das suas obsessões, dá para perceber) antes do Natal daquele ano - semanas depois, sem que houvesse notícia de nenhuma epidemia mortal entre "maconheiros", o próprio Sikeira sofreu um ataque cardíaco.

Recuperado, voltou ao programa, saindo a falar de dentro de um caixão.

O apresentador do "policialesco" regional vem ganhando tanto protagonismo que chegou a entrevistar Bolsonaro ao vivo no seu programa; e o presidente ainda manda recados simpáticos ao apresentador a quem chama de "alma do povo brasileiro".

Sikêra, o homem que reteve Flávio Bolsonaro à hora da acareação, tem tudo, portanto, para ser considerado um bolsonarista-tipo. Só lhe falta fugir de debates e esconder-se da polícia.

Correspondente em São Paulo

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