Henrique Burnay
09 dezembro 2019 às 11h46

Os campeões errados

Henrique Burnay

Em 2005 os governos alemão e francês resolveram apoiar a criação de um concorrente do Google. Chamava-se Quaero, ia ser um motor de busca europeu, alternativo ao gigante americano, recebeu uns milhões de euros de dinheiros públicos e morreu, sem deixar história nem saudades, oito anos depois. Quem quiser saber mais terá de pesquisar no Google.

Há poucas semanas, os governos alemão e francês anunciaram uma "nuvem digital" europeia. A Gaia X será a concorrente dos serviços da Google, da Amazon Web Services e do que mais houver. Vai ser a arma da soberania digital europeia, dizem. Com fundos públicos, claro.

Em 2010, quando lançou a Agenda Digital, a Comissão Europeia reconhecia que a maioria das empresas que se destacava na economia digital era não-europeia. Quase dez anos passados, das 20 maiores empresas da economia digital, 15 são americanas, e apenas uma é europeia. E se não usar o 5G da Huawei, o mais provável é a Europa demorar mais um ou dois anos a atingir os resultados que ambiciona.

Postas as coisas assim, e reconhecendo que a economia digital, ou economia dos dados (já lá vamos) é revolucionária, é evidente que a Europa está atrás e precisa de recuperar terreno se quiser liderar um pouco e não depender completamente. Não é necessário uma grande dose de nacionalismo ou europeísmo fundamentalista, para o reconhecer. O problema é como.

Ângela Merkel e Emmanuel Macron têm falado de soberania digital como quem fala da capacidade dos Estados em garantir a sua autonomia estratégica e a dos seus cidadãos em ser donos dos seus dados. Macron, na entrevista ao Economist, falou mesmo de os Estados (europeus) estarem a desaprender a gramática da soberania.

Confrontados com as realidade, na Europa, agora, fala-se em rever as regras de concorrência, para ter em conta a competição no mercado global, e não apenas no europeu.

Achar que a Europa precisa de ter líderes digitais é uma coisa, querer punir os estrangeiros ou inventar europeus fabricados por estímulo dos governos e investimento público é outra, que ainda não provou ter sucesso. Ao contrário de mecanismos que já provaram poder ser eficazes.

O Regulamento Europeu de Protecção de Dados, que provocou um inferno de emails a pedir consentimento para usar os nossos dados, foi mal recebido primeiro, e copiado depois. Considerando que a Europa representa um quarto das suas receitas, foi óbvio para os gigantes tecnológicos que teriam de lhe obedecer. Além de que da América latina à Califórnia, há quem tenha imitado aquela regulação.

Entre o ambiente desregulado americano, e a tendência para o controlo totalitário chinês, a Europa tem uma visão diferente da protecção dos dados. Usar o peso económico do seu mercado de 500 milhões para impôr essa diferença, com razoabilidade, faz sentido.

Esse caminho pode garantir alguma soberania digital individual, mas não resolve o outro problema, o dos líderes tecnológicos. Aí, estão em confronto dois caminhos. Um, o de criar campeões europeus revendo as regras da concorrência, e eventualmente à custa de pequenas empresas europeias. O outro, o de criar regras, por exemplo, que dêem algum retorno financeiro (e, portanto, soberania digital) aos donos dos dados (os utilizadores), e estimular uma economia onde possam nascer e capitalizar-se novas empresas. Eventualmente grandes, um dia.

A escolha está entre inventar campeões, ou regrar o mercado, estimular um ambiente competitivo e aproveitar o que se pode fazer com os líderes que já há. A vantagem de algumas multinacionais não terem pátria pode ser essa.