Espirrar a primavera
O despertador toca. Enquanto se estica para carregar no snooze do despertador e ficar mais uns minutos a contrariar a realidade, é invadido por espirros. Muitos, oito ou nove sem parar. Do outro lado da cama resmunga-se pelo barulho. Sem vontade e com a sensação de que acabou de levar vários estalos na cara, cambaleia para o WC. Mal dá três passos e abre a porta do quarto, mais cinco espirros tolhem-lhe o movimento. Ouve um chiiiuuu ao fundo, agora vindo do outro quarto, o dos miúdos. Estranho o tom acusatório.
No WC olha para o espelho e vê um homem que desconhece, da sua idade, mas com um nariz encarnado e os olhos esbugalhados a lacrimejar. Mais espirros e mais espirros. Já são mais de vinte, tenta contar. Em frente à máquina do café repete o movimento diário de se enganar a colocar a cápsula e enquanto pensa nos sonhos que teve, com aquela sensação de serem sonhos de outras noites, volta a espirrar. E espirra e espirra. Antes de a caneca estar cheia de café perde a conta aos espirros de vez. Senta-se a tentar comer mas os espirros tiram-lhe o apetite. Desiste e decide rapar a barba numa tentativa de conter os espirros e de eventuais pólens ali aprisionados. E espirra. Sem perceber está já vestido e despede-se da família com beijos interrompidos com mais espirros.
A descer a escada do prédio, sem conseguir perceber se está sol ou chuva, se é dia ou noite, lembra-se, enquanto espirra, de que chegou a primavera, a sua estação preferida não fosse a grande alergia que tem às flores e ao seu cheiro que lhe fazem sempre lembrar cemitérios. Odeia flores, a não ser girassóis. Não percebe o valor que lhes dão. Já na rua abre a porta do prédio, que hoje esta diferente, de madeira e não de vidro, e olha para a rua. À sua frente um manto de flores, rosas, cravos, túlipas, margaridas, um manto que cresce ao som de cada espirro. E vai espirrando. Dá uns passos em direção ao manto e começa a enterrar-se nele, e espirra de aflição. Entretanto o despertador toca, acorda de vez e é invadido por espirros...