Lar de Famalicão, uma tangente à indignidade
Permitem que eu não diga Estrutura de Monitorização do Estado de Emergência (EMEE)? Parecendo que temos todo tempo do mundo e andamos de pijama (e nem andamos, sentamo-nos no sofá), o facto é que andamos ansiosos. Então, a Emergência, ou melhor, a Eme, apareceu-nos ontem à noite na tevê para nos dar conta da emergência em que vivemos.
Não lhe vou chamar pelo acrónimo EMEE, porque soa a balido de cordeiro a caminho da degola, quando a intenção é o contrário, queremos a Eme forte, clara, determinada. A substantiva Eme são todas as autoridades que se juntaram ali para fazerem a folha ao coronavírus. A Eme decidiu, e bem, fazer-nos regulamente o ponto da situação.
O relato, ontem, calhou ao ministro Eduardo Cabrita. Merecíamos e precisávamos de relato mais forte, claro e determinado - e também mais curto. Os primeiros minutos foram passados numa declaração daquelas que se perdoam aos notários mas não ao cirurgião que vem à sala de espera anunciar-nos como decorreu a operação ao ente querido.
O ministro chegou a dizer "Estrutura de Monitorização do Estado de Emergência"... Enfim, só muito à bordinha das televisões cortarem o direto porque a sonolência já atacava os confinados, o ministro lá anunciou ação: sete detidos porque houve abusos. Na verdade, foi dito "violação do dever de confinamento" e "constatação de factos de crime de desobediência."
Eu preferia ter palavras como abuso, ditas com voz indignada e dedo em riste. Hoje em dia, estúpidos em multidão são para ser tratados com um "tá a andar!", em vez da farpela com que a Introdução às Noções de Direito vestiu definitivamente os nossos comunicadores, é uma pecha nacional, de jornalistas a governantes. Já foi um pau que no comunicado de ontem se especificassem os lugares, Esposende e Póvoa de Varzim e o santuário do Sameiro. Marginais com jogging e santuários apinhados são hoje crimes e pecado.
Para relatar hoje em dia há vídeos, sabem a Eme e os ministros? Faço seguir um exemplo positivo, porque é papel das autoridades passar-nos a mão pelo pelo, além de sancionar. Veio da ilha de Maiorca, Espanha, mas não digo que é estrangeiro porque o canalha do coronavírus também nos ajuda a abrir o espírito, hoje estamos no mesmo barco de cruzeiro.
O vídeo é na povoação de Algaida, nem vivalma, janelas de portadas fechadas... Ao fundo da rua vazia surgem carros, sirenes a gritar, luzes a rodopiar e faróis a piscar... São dois carros de polícia, travam, saltam cinco guardas fardados, um deles com uma viola. Abrem-se as portadas, espreitam cabeças... Os polícias desatam numa zarzuela (ou lá o que é), a viola soa, os outros polícias batem palmas e bailam. A rua canta: Jo quedo a casa, fico em casa... Acaba a música, os dois carros de cuidados intensivos partem com as sirenes aos gritos... A salvar outra rua. Ministro Cabrita, ou outro, vamos a parecido?
Entretanto, uma crítica severa à prestação de ontem. Passei o fim de semana em alarme social. De repente, numa notícia, o mundo a que estou habituado desmaia à minha frente. Num lar de velhos, em Famalicão, surgem testes positivos ao coronavírus, debandada dos trabalhadores, ficam duas pessoas (uma delas, grávida), a cuidar de homens e mulheres, acamados, doentes, dos 55 aos 94 anos. O lar é privado, não tem quem substitua os cuidadores, não tem, parece que é assim que se chama, plano de contingência. Fim da notícia.
Eu, por estes dias, acho que não fiz plano de contingência para muitas coisas da minha vida. Mas, antes daquela notícia, sabia lá eu o que era não ter plano de contingência! Um lar de 32 velhos, entre um de 55 com HIV e outro de 94 com 94 anos, uma cuidadora grávida e só mais outra, uma casa, um lar, abandonado, de velhos, e o coronavírus já instalado. E tudo sem plano de contingência. Fim da notícia.
E foi o fim da notícia que me agoniou: "E?!" Não havia "e" nenhum. Não havia copulativa nenhuma que juntasse a desgraça às desgraças que, necessariamente, iriam vir. Nada. A vida (desculpem a ironia) suspendia-se naquele absurdo. Nada para aquelas 34 pessoas, que ficassem encerradas na não solução. Em Famalicão, já ali. Em Portugal, aqui. Se isto não era para alarme social, o que é alarme social?
Mas depois rompeu-se o absurdo. Os 32 velhos foram para o Hospital Militar do Porto. Muito provavelmente a vida deles vai ser a previsível desgraça que o leitor e eu supomos. Mas já é outra coisa, outro mundo, alguma civilização, não aquele absurdo com que me agoniei. Por uns momentos pensei que podíamos já estar a aceitar aquilo.
A mínima solução que se encontrou é tão fundo, tão importante, tão imprescindível de não abdicar, que devia ter sido anunciado na Eme, a Estrutura de Monitorização do Estado de Emergência, onde estão integradas todas as autoridades do país, incluindo o Ministério da Defesa, ao qual cabe defender o país. Incluindo a dignidade do país.