Resumindo, uma história de amor e uma canalhice

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Se bem se lembram, a semana foi marcada por duas histórias de amor. Grosso modo, o amor é uma história entre duas pessoas (eu disse "grosso modo") e uma boa história de amor, acabe bem ou mal, tem de ter emoção. Por exemplo, Romeu e Julieta: para chegar até nós, foi preciso ela tomar um sonífero, Romeu julgá-la morta, matar-se e Julieta apunhalar-se para se juntar, enfim, a ele.

As duas histórias desta semana também se basearam em equívocos: não se deixa entrar no avião um homem com um colete armadilhado e não é nadando que se apanham barcos de cruzeiro. Mas, apesar da coincidência do uso do quiproquó, os dois casos desta semana não têm nada que ver um com o outro.

Temos, então, que Seif Mustafa, egípcio de 59 anos, partiu de Alexandria. Bastaria o nome da cidade para nos evocar um dos seus filhos, Georges Moustaki, e a mais célebre das suas canções, Le Métèque ("Et nous ferons de chaque jour/ Toute une eternité d'amour/ Que nous vivrons à en mourir...") Amor e uma eternidade. Um quarto de hora depois de o avião descolar, Mustafa chamou a hospedeira e mostrou-lhe a banda à volta da barriga, bombas, fios e um controlo remoto numa mão. Não foram necessárias muitas palavras para saber quem passava a mandar no avião. Mustafa exigia ir para Chipre, onde vivia a mulher.

O avião lá foi, 72 pessoas a bordo. Pousou em Larnaca. Negociações. No intervalo, um passageiro fez um selfie com Mustafa. O sorriso constrangido do passageiro domina a foto, num trejeito de quem ainda não decidiu ser corajoso ou só idiota. Ao fim de seis horas de conversações, o sequestrador rendeu-se. As bombas era falsas, telemóveis presos com gaze. Às autoridades cipriotas, ele disse: "Quando se está sem ver a família há 24 anos e se quer ver a mulher e os miúdos, e o governo egípcio não o permite, que há de um homem fazer?"

O sequestro foi na terça-feira. No sábado anterior, o barco de cruzeiro Marco Polo atracou no Funchal, partiria à noite. O casal Susan e Michael Brown, de 65 e de 69 anos, já há quatro semanas a bordo, resolveu desembarcar de vez e regressar de avião a Bristol, Inglaterra. Os dois foram de táxi para o aeroporto de Santa Cruz e desencontraram-se. Ela supôs que ele tivesse voltado ao barco. E decidiu atirar-se ao mar - o aeroporto faz terraço sobre o Atlântico - para apanhar o Marco Polo e recuperar o seu marido. O facto é que Susan foi encontrada e salva por pescadores, a 500 metros da costa, era meia-noite e tal, mar bravio e lua cheia. Nadava ou, melhor, exausta agarrava-se à malinha de mão que nunca largou.

Como não recordar - mudando o que há para mudar, do vinho madeira para o porto - Dona Antónia Ferreira, a Ferreirinha, salva em 1861, ao descer o Douro, no naufrágio em que morreu o seu amigo, o barão de Forrester? Valeu à Ferreirinha as saias enfunadas, que lhe serviram de boia, como a Susan a malinha de mão. Dir--se-á mais tarde que não foi ao cair da noite que ela se deitou ao mar mas mais tarde porque participou numa missa pascal até às dez da noite.

Voltando a Chipre, de onde chegou a versão de Marina Paraschou, a mulher que o sequestrador de avião Mustafa quis reencontrar. Eles conheceram-se em 1987 e separaram--se quatro filhos depois, em 1990: "Para mim foi o inferno." Quando uma das filhas morreu de acidente, "ele não quis saber", disse ela. Ele esteve preso no Egito e foi expulso de Chipre por violência doméstica e tráfico de documentos.
Foram essas as duas histórias de amor da semana, com a emoção suficiente para fazer manchetes e animar as conversas no café. De ambas conheceram-se mais tarde pormenores que ensombraram ou diminuíram as histórias iniciais dos protagonistas. Afinal, não era o governo egípcio que impedia o reencontro da família de Mustafa, era a família. Afinal, Susan não terá ficado quatro horas a nadar, mas atirou-se ao mar depois de o Marco Polo passar...

Mas insisto na sentença que passei no princípio desta crónica: estas duas histórias não têm nada que ver uma com outra. E não é pelo que se soube depois. É pelo que esteve lá desde o princípio: aquele colete de explosivos. Verdadeiro ou falso, verdadeiro para 71 pessoas em pânico e para os seus. Raios partam o amor do Mustafa, quero lá saber da maluquice que ele tem.

Já Susan, continua admirável. Irei sempre vê-la, a mulher que nadou para intercetar um paquete e resgatar o seu amor. Imagino-a a nadar, no rasto do Marco Polo iluminado pela lua cheia... Inventada a sua história de amor? Não são todas, ou pelo menos as melhores? Quem só a si se expõe tem o direito de tomar um sonífero, à espera que um Montecchio a venha acordar com um beijo. Ou não.

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