Facto: 99,8% sem Covid-19. Surfar a curva achatada

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Um longo mês, mas apenas um mês. Talvez a maior perplexidade desta crise Covid-19 seja o facto de não termos ainda chegado, sequer, aos 20 mil infetados em Portugal. São menos de 0,2 por cento da população segundo os números oficiais. O número é extraordinariamente bom pelo baixo número de vítimas (629), mas mantém-nos completamente dependentes de uma vacina que não existe. Até lá, a bomba-relógio está colocada nas mãos do Governo para a propagação provável do Outono-Inverno e o primeiro-ministro está consciente disso.

Porque o vírus não vai desaparecer. Nunca nos esqueçamos disto. Ontem tivemos 750 novos casos. Mesmo com um confinamento intenso (não absoluto), a curva flutua diariamente entre os 400 e os 800 casos.

Até já tivemos dois picos - 1035 casos a 31 de Março e 1516 (a 10 de Abril).

Admitamos que, com maior proteção individual e ajuda do calor (menos propagação, espera-se), consigamos manter a evolução abaixo dos mil casos diários.

Sabemos já que 80% dos doentes Covid-19 recuperam em casa, 15 por cento necessitam de internamento e 5% acabam por ir parar aos cuidados intensivos (normalmente mais de uma semana). Conclusão: Portugal está a conseguir surfar bem a curva inicial da crise. Conseguimos manter-nos assim?

A estratégia do Governo é essa: surfar a curva achatada de novos casos diários (abaixo dos 1000) que não põem em causa o Serviço Nacional de Saúde.

Os dados comprovados até ao fim de Abril - serão pouco mais de 20 a 25 mil casos - mostram, no entanto, que estamos muitíssimo longe de qualquer imunização coletiva. Por isso mesmo, dar relevância aos testes de imunidade como eles fossem um "salvo conduto" é o maior erro de comunicação dos últimos dias. Podem e devem ser realizados para efeitos científicos. Mas não podem servir para serem propagandeados como "atestados de trabalho". Como dizia a super-avançada revista norte-americana Wired, ainda ontem: "Desculpem, a imunidade ao Covid-19 não vai ser um super-poder". Porque ainda não é claro quanto dura essa imunidade.

Aliás, repare-se: mesmo que possamos admitir que muita gente contraiu a doença sem sintomas, de quantas pessoas estaríamos a falar? Por hipótese, se cada teste positivo representasse 10 casos desconhecidos, estaríamos a passar de 0,2% de infetados para 2% da população. Mesmo assim 98% da população portuguesa não teria tido qualquer contacto com o coronavírus. E o efeito de imunização coletiva só funciona a partir de 60 a 70%... Estamos a anos-luz disso.

Portanto, só há um critério rigoroso e indiscutível para medir o contágio e a luta contra ele: os óbitos. Ora aí, a nossa taxa de letalidade (ou seja, óbitos dentro do universo de pacientes confirmados com Covid-19) é de 3,2 por cento. Trata-se de um sucesso atendendo aos números que assolam o mundo. Mais: os 629 óbitos representam 0,006 de taxa de mortalidade bruta num universo de 10 milhões de portugueses.

O que nos leva às premissas essenciais do Governo - como surfar a curva-limite do SNS. Ou seja: qual o número de novos casos / número de internamentos / pessoas em cuidados intensivos / e número de óbitos.

É isto que vai determinar se vamos continuar a funcionar como sociedade durante o Verão mas, sobretudo, no Outono-Inverno.

Testes fáceis. Caseiros?

Quem conhece o sítio https://covid19.min-saude.pt/ponto-de-situacao-atual-em-portugal/ pode ficar com uma radiografia sobre o que nos aconteceu. Por exemplo: no dia 9 de Abril processaram-se 12.018 testes. Este pico, antes do fim-de-semana de Páscoa, gerou os tais 1516 infetados revelados num só dia (sexta-feira passada), o recorde.

Em média flutuamos regularmente entre os 8 e os 10 mil testes diários. Até agora foram feitos 208 mil testes (ou seja, pouco mais de 2% da população).

Repare-se: não estamos sequer no Inverno, o tempo está bom e as gripes não andam tão ativas nesta fase do ano. Como seria se fosse Inverno e toda a gente que tem tosse e febre quisesse saber se tem Covid-19? A nossa capacidade para testes ronda os 12 mil, segundo a Direção Geral de Saúde. É bom para hoje, mas é nada no Outono. Felizmente, novas tecnologias entrarão em ação, algumas das quais permitirão fazê-los em casa. Aguardemos.

Portanto, o Governo sabe que para o país funcionar tem de haver acesso e facilidade individual para se fazerem testes com resultados rápidos. Sem isso, a propagação acelera e acabamos no caos.

Multiplicar camas e cuidados intensivos

À medida que os doentes têm testes positivos, segue-se a quarentena e depois a cura (ou óbito). Comos tais 20% de novos casos, os sistemas hospitalares vão ficando cada vez mais ocupados.

Neste momento, com os últimos dados (dia 16 de Abril), embora pareça que a situação é boa, estamos com o máximo número de internados: 1302.

Nos cuidados intensivos há agora 229 pessoas - o pico foi de 271 doentes (a 7 de Abril).

Não nos esqueçamos deste ponto: antes da crise tínhamos 1140 ventiladores em Portugal. Provavelmente só ocupamos 25% dos ventiladores no maior pico da crise no dia 7 de Abril (admitindo que todas as 271 pessoas dos cuidados intensivos os estavam a usar, o que não é certo). E nessa ocasião só estávamos provavelmente com menos de 0,1 por cento da população em crise com o Covid-19.

Como Angela Merkel mostrou na Alemanha, o caso português talvez se aproxime da equação que representa 0,4 por cento da população em crise com COVID-19. Este valor deve rebentar com a capacidade do SNS - as tais 1140 pessoas nos cuidados intensivos e entre cinco a seis mil internados.

Talvez neste momento já exista mais uma centena de ventiladores oferecidos ou comprados pelo SNS. As camas-extra ainda não foram usadas - infelizmente vão sê-lo na nova vaga.

Se ampliarmos os números de infetados para uns nada improváveis 2% da população com Covid-19 (num determinado momento do Inverno durante três ou quatro semanas), significará que, para a curva do SNS aguentar, precisaríamos de ter pelo menos 5000 ventiladores e camas disponíveis nos cuidados intensivos - tomando como referência o retrato da crise que estamos a viver.

Somos capazes de produzir ou comprar até ao Outono mais quatro mil ventiladores? E temos médicos e enfermeiros suficientes para uma escala destas?

A Direção Geral de Saúde nunca disse qual o número de casos novos diários que rebentam com a curva do SNS até porque a duração de permanência nos cuidados intensivos é muito relativa.

Mas, num retrato pessimista, imagine-se que a Covid-19 se transmite acima de 2% da população em simultâneo no Inverno...

Multiplicar camas e ventiladores

Creio que a questão essencial com que o Governo se defronta é esta: com que capacidade tem de dotar o SNS para o Outono-Inverno. Porque, quanto maior for a capacidade, mais a curva aguenta, menos confinamento é necessário. Porque o vírus está aí e não adianta pensar-se que alguma vez isto vai voltar a zero. Sejamos francos: nem na China, acreditando-se ou não nos dados oficiais.

Além disso, por mais medidas de higiene social, proibição de ajuntamentos e confinamentos intermitentes, haverá sempre os transportes públicos e as muitas atividades que não podem ficar em teletrabalho.

A alternativa à ampliação exponencial do SNS é admitirmos que, de Novembro a Abril, não vai haver atividade económica. E isso é sinónimo de outra doença grave, física e social: a falência coletiva de cidadãos e Estado, além das vidas perdidas.

Há um outro dado psicológico determinante neste surfar da curva: suportarmos coletivamente 200 ou 300 óbitos por dia covid-19, em vez dos 40 a 50 atuais.

Em Portugal morrem anualmente aproximadamente 110 mil pessoas, ou seja, uma média de 300 pessoas por dia. Sabemos também que muitas das vítimas Covid-19 são, infelizmente, pacientes de outras patologias, alguns com idades avançadas.

Seremos capazes de contrabalançar o brutal impacto das mortes Covid-19 com a noção de que morrem em Portugal 300 pessoas por dia em circunstâncias normais?

A Direção Geral de Saúde, em nome da clareza e da gestão de comunicação, terá de começar a publicar (diária ou pelo menos semanalmente) quantas pessoas faleceram em Portugal e qual a comparação com a amostra de óbits totais dos dias homólogos em anos anteriores. Sem isso não sabemos o que está realmente a acontecer no total da mortalidade nacional. Está a subir? Muito?

Aliás, mortalidade não Covid-19 parece estar a aumentar (sobretudo por problemas cardiovasculares) mas isso não aparece como um problema grave e dano colateral desta crise sobre a qual também é preciso refletir.

Preparar o SNS é o melhor e mais barato

Quanto custa equipar o país? É verdade que pode haver uma vacina, mas se ela não surgir, só o plano B nos ajudará. Sim, é verdade que pode surgir uma substância farmacêutica que contrarie a progressão da Covid-19, o que nos tiraria desta espiral. Mas até agora não há sinais.

Por isso, qualquer solução tem custo elevados, mas a mais cara de todas é a do país ter um milhão de trabalhadores em lay-off ou a tomar conta das crianças. Mil milhões de euros por mês. Além das falências, inevitáveis. E vítimas.

Por fim, duas notas: António Costa trouxe um oportuníssimo raio de Sol à vida de milhões de portugueses com a esperança das férias. Elas também têm de ser válidas para a população mais idosa no Verão porque, apesar do risco, sem Sol e alguma vida social, não aguentarão um Inverno de provável confinamento. E a menos que estejamos mergulhados no caos, o Sol e a praia (com soluções que não são fáceis de imaginar...) terão de fazer parte da equação de reforço imunitário dos portugueses de todas as idades.

Entretanto, o discurso do Presidente da República conseguiu ser simultaneamente firme e esperançoso. Costa e Marcelo têm ajudado a ultrapassarmos a crise com alguma luz ao fundo do túnel. E face à desgraça que sucedeu ao SNS na última década, tudo isto tem, de facto, qualquer coisa de milagre para já.

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