Como brasileira, tem sido muito difícil não me posicionar perante o que está a acontecer no Brasil. Como brasileira, que vive em Portugal, tem sido mais difícil ainda ver opinion makers portugueses posicionarem-se sobre o que está a acontecer naquele país sem saberem realmente o que se passa por lá. Então vamos lá esclarecer algumas coisas: para começar, quem não conhece o sistema de classes sociais brasileiro dificilmente conseguirá entender o que está a acontecer. Não sou uma estudiosa do tema, mas como brasileira tenho um conhecimento empírico sobre o assunto, afinal, foram 25 anos a viver lá. Neste sentido, enquanto os de fora apontam a desigualdade social como um dos principais problemas do Brasil, eu vejo que o problema da maioria da população brasileira é já não encarar isso como um problema. Ou seja, tornou-se normal viver num país com uma pequena parcela da população muito rica, uma grande parcela muito pobre e uma maioria que sempre viveu no limbo (nunca foi rica mas também nunca foi pobre)..Esta maioria chamada classe média foi a que sempre sofreu mais com as políticas instituídas naquele país (e com a corrupção que sempre foi inerente a essas políticas), pois, diferentemente dos pobres, possuía dinheiro para pagar o que devia e, ao contrário dos ricos, não tinha dinheiro suficiente para fugir ao pagamento do que devia (ou seja, para corromper, subornar, e assim não pagar). Neste sentido, esta classe passou a trabalhar com foco em dois objetivos: aproximar-se cada vez mais dos ricos e afastar-se cada vez mais dos pobres..Tendo em conta o primeiro objetivo, a classe média, espelhando-se nos exemplos dos ricos (classe alta), também começou a contornar, ou a fechar os olhos, determinadas coisas. Por exemplo, num país onde todo mundo sabe que prostíbulos são proibidos por lei mas existem determinadas boates que funcionam como tal; num país onde todo mundo sabe que continuam a existir cafetões (também proibidos por lei) mas estes são chamados "empresários", aqueles que fingem não saber é porque, de alguma forma, também passaram a aproveitar-se disto..Considerando o segundo objetivo, obviamente que a classe média não gostou quando começou a emergir uma "nova classe média" (média-baixa) no Brasil. E foi neste sentido que eu cansei de ouvir, durante os governos Lula e Dilma, comentários do tipo: "Onde já se viu? Agora empregada doméstica quer ter direitos, quer ter carteira de trabalho assinada e etc!", "Onde já se viu? Agora "qualquer um" anda de avião!", "Onde já se viu? Agora fulana não quer mais trabalhar como faxineira, quer estudar, arrumar um trabalho melhor!".Por isso, custa-me a acreditar que a classe média, algum dia, tenha tido real interesse em acabar com a corrupção naquele país. Foi o receio de perder os benefícios que esta corrupção também lhe proporcionou que fez que esta classe anuísse com os interesses de políticos e empresários da classe alta, contribuindo para a atual situação do Brasil..Se o intuito fosse o de realmente acabar com a corrupção, como ninguém nunca questionou o absurdo de dar amparo legal às chamadas "delações premiadas"? Ora, se aqueles que comprovadamente roubaram e foram descobertos têm de delatar para reduzirem as suas penas, se o que os motiva é um "prémio final", como isto não é visto como uma espécie de corrupção?.Num país onde a violação dos direitos humanos é intensa, a começar pelo assassínio daqueles que defendem esses direitos; num país onde um ex-presidente (mas poderia ser qualquer pessoa) é acusado em primeira e segunda instâncias, mas constitucionalmente só poderia iniciar o cumprimento da pena após o esgotamento de todos os recursos possíveis e isto não aconteceu; num país onde muitos dos políticos que foram acusados e comprovadamente culpados têm conseguido manter-se fora da prisão por gozarem do foro privilegiado (um direito adquirido de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro), como é possível acreditar que "finalmente começou a fazer-se justiça" no Brasil?.Não, não se iludam os colegas portugueses... A corrupção é o modus operandi da sociedade brasileira. E enquanto não houver uma mudança na maneira de pensar e agir desta sociedade, a justiça só será vista nos happy endings das telenovelas daquele país..Jornalista, doutoranda em Migrações pelo IGOT - Universidade de Lisboa