América Latina 'rembipé' (luminosa)

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Na tradição espiritual Avá Guarani todos os seres têm um nome interior. Todos nascem com a chama dessa luz interior apagada e precisam que ela seja acesa para se poderem reconhecer a si mesmos e tornarem-se membros da comunidade.

Para analisar a América Latina será necessário descobrir o seu nome interior, para a identificar entre as mudanças globais e imaginar o possível desenlace dos seus processos políticos e sociais.

Escolhi como nome interior "América Latina rembipé" (América Latina luminosa), com a ideia de que a defesa dos direitos humanos, a gestão das riquezas, o modelo de desenvolvimento, a superação da pobreza e a administração com integridade são os temas centrais por que lutam as organizações políticas de esquerda e de direita, assim como as novas manifestações de cidadãos que, sem organização nem identidade ideológica definida, são cada vez mais ativas e participativas.

Viragem eleitoral à direita

Desde o final de 2015 que se anunciava o início de um esvaziamento da "maré rosa" das esquerdas latino-americanas, com as vitórias eleitorais de Jimmy Morales na Guatemala em setembro e de Mauricio Macri na Argentina em novembro. Em 2016, a derrota de Evo Morales no plebiscito boliviano de fevereiro, a vitória, em junho, de Pedro Pablo Kuczynski (PPK) no Peru, e a subida ao poder de Michel Temer no Brasil em agosto confirmaram a ideia de que os governos de esquerda estavam paralisados, desgastados e na defensiva. A América Latina iluminava-se parcialmente no seu lado direito porque, apesar dos triunfos de líderes de direita, nenhum deles contava com maioria parlamentar própria.

Em 2017 realizaram-se sete eleições, três gerais e umas legislativas, duas regionais e umas autárquicas com resultados díspares. O triunfo do socialista Lenin Moreno, nas eleições gerais do Equador, deu um fôlego à esquerda latino-americana, mas logo surpreendeu pela sua rutura com Rafael Correa e aumentou as dúvidas sobre a continuidade da linha política de esquerda compartilhada com a Venezuela, a Nicarágua e a Bolívia. Nas Honduras, a situação é mais dramática, após duas semanas de incerteza, um apagão informático que modificou os resultados, protestos violentos que causaram 18 mortos e a recontagem dos votos, o Tribunal Eleitoral declarou vencedor o presidente em funções, Juan Orlando Hernández. Nas eleições autárquicas na Nicarágua, nas legislativas e regionais na Argentina e nas estaduais na Venezuela e no México, venceram os agrupamentos e alianças apoiantes do poder instalado, permitindo assim o fortalecimento e consolidação do governo de Nicolás Maduro, cujo partido ganhou 17 dos 23 governos estaduais e a maioria dos municípios da Venezuela, e do presidente argentino Mauricio Macri, cujos aliados ganharam 15 dos 24 estados e que aumentou a presença dos seus partidários no Congresso, sem esquecer que no México a vitória do Partido Revolucionário Institucional (PRI) no governo, em dois dos três estados em disputa, fortalece as possibilidades da sua continuidade no governo nacional num próximo mandato. Não nos podemos esquecer de Cuba, que teve eleições dos representantes de base no órgão municipal do Poder Popular em novembro, com a participação de mais de sete milhões de votantes, e que iniciou a primeira etapa do processo de eleições gerais que terminará com as eleições para a Assembleia Nacional do Poder Popular (Parlamento) e para a Presidência. Será em dezembro, com o Chile, que a região fará a grande viragem à direita (moderada) com o triunfo de Sebastián Piñera. Com estes resultados, a América Latina ilumina o seu nome cada vez mais para a direita.

A disputa pela legalidade e integridade

Ao mesmo tempo que se realizam eleições, desenrola-se outra grande luta para combater a corrupção dos governantes. No Brasil, na Argentina, na Guatemala, no Peru, no Uruguai e no Paraguai, os meios de comunicação e a pressão ativa dos cidadãos descobrem as teias da corrupção onde se associam empresários, governantes e, em alguns casos, até juízes.

Os cidadãos latino-americanos estão a participar particular e ativamente nestas lutas, através da pressão e intervenção direta para o eficaz funcionamento das suas instituições democráticas no combate contra a arbitrariedade, corrupção e impunidade dos governantes.

No primeiro trimestre de 2017 levantou-se uma onda de protestos em toda a América Latina, que teve no incêndio do Congresso Paraguaio e nos protestos de rua na Venezuela as suas imagens mais heroicas e dramáticas, e na teia de subornos Odebrecht a prova concreta da maneira como os interesses particulares ou sectários intervêm no financiamento eleitoral, corrompem os sistemas políticos na América Latina e debilitam a representação democrática.

Com a renúncia do vice-presidente do Uruguai, Raúl Sendic, a prisão do vice-presidente do Equador, Jorge Glas, do ex-presidente do Peru, Ollanta Humala e do ex--vice-presidente da Argentina, Amado Boudou, assim como a condenação à prisão em primeira instância do ex-presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva, a destituição e suspensão dos senadores paraguaios Oscar González Daher e Jorge Oviedo Matto, observam-se os avanços da intensa luta contra a corrupção e a arbitrariedade que os latino-americanos enfrentam.

O que merece destaque nestes acontecimentos históricos é que existe uma consciência social de que este combate contra a corrupção não se limita às detenções dos delinquentes, mas também que se torna necessária uma vigência eficaz das instituições republicanas.

Em 2018 perfilam-se lutas importantes mais além das diferenças ideológicas e políticas, que poderão definir a tendência da região para a próxima década. O calendário eleitoral - que se iniciará em fevereiro com as eleições gerais da Costa Rica seguidas, em abril, pelas do Paraguai e de Cuba, prosseguirá com a Colômbia em maio, o México em junho, o Brasil em outubro e culminará com a Venezuela entre outubro e dezembro - terá na corrupção, na desigualdade social e na superação da pobreza inimigos poderosos a enfrentar.

O desafio será longo e o nome interior "América Latina rembipé" (América latina luminosa), ainda precisa de aumentar a sua luz para que se possa reconhecer a si mesmo e, por sua vez, ser um membro ativo desta comunidade globalizada.

* Ex-embaixador do Paraguai em Portugal e investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE

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