16 julho 2018 às 09h45

A República das 24 Horas é Campeã do Mundo

Rogério Casanova

Foi um torneio de choques, desde os primeiros dias. Os campeões em título foram eliminados ainda na fase de grupos, algo que nunca lhes tinha acontecido. E a selecção que recolhia à partida grande parte do favoritismo (pelo menos no mercado de apostas) acabou por cair precocemente, derrotada pelos anfitriões.

O jogo derradeiro colocou frente a frente uma das selecções mais fortes (a única a resistir à vaga revolucionária) e a mais resiliente das surpresas - uma equipa inegavelmente talentosa, mas cuja presença na final poucos adivinhariam no início da competição. Qualquer final é decidida por pequenos pormenores: momentos em que meio segundo ou meio centímetro transformam irrevogavelmente o futuro; esta não fugiu à regra.

O candidato mais plausível a "momento tudo-poderia-ser-diferente" ocorreu ao minuto 79. O médio-ala Unal Kaya esgueirou-se pelo flanco direito, avançou até à linha e sacou um cruzamento milimétrico para a área da Carpatália, onde o possante avançado Mehmet (1,90m de altura) evadiu a até aí cerrada marcação de Alex Svedjuk, e cabeceou de cima para baixo. A bola bateu no chão, meio metro à frente do guarda-redes Béla Fejér, que ergueu os braços por instinto, o suficiente para desviar a trajectória ascendente e fazer a bola pingar duas vezes na barra antes de sair. Foi a última oportunidade de golo clara produzida pelo caudal ofensivo da República Turca do Norte de Chipre. O nulo manteve-se até ao apito final e a decisão foi adiada para as grandes penalidades.

Estes empolgantes acontecimentos tiveram lugar a 9 de Junho, perante dois mil e quinhentos espectadores, no Estádio Queen Elizabeth II em Enfield, um bairro no norte de Londres. Foi a terceira edição do Campeonato do Mundo alternativo organizado pela ConIFA, organismo presidido por um ex-árbitro holandês e por um excêntrico coleccionador alemão, que reúne associações de futebol independentes não-afiliadas com a FIFA.

Há várias razões para não se ser reconhecido pela FIFA, e os membros da ConIFA exibem um catálogo completo: desde Tuvalu, que não cumpre os critérios de admissão sobre o número apropriado de estádios e hotéis no seu território, até ao Tibete, que não cumpre o requisito de não irritar a China. Os restantes membros incluem toda a espécie de micro-estados, diásporas, minorias étnicas ou linguísticas, acidentes históricos e disfunções geográficas. O próprio local do torneio é um exercício de excentricidade cartográfica: embora tenha decorrido oficialmente em Barawa, uma pequena cidade portuária no corno de África, 200 quilómetros a sul de Mogadishu, os jogos realizaram-se em Londres, pois é essa a sede da Federação do Barawa, criada pela comunidade somali no exílio.

O desempate por grandes penalidades acabou por dar o troféu à Carpatália, que representa um enclave em território ucraniano conhecido como Ruténia ou Transcarpátia, conhecido entre os apreciadores de curiosidades históricas como o Estado independente mais fugaz do século XX. Em 15 de Março de 1939, dia em que as tropas de Hitler avançaram sobre Praga e a Checoslováquia foi desmantelada em protectorados ou estados-clientes do III Reich, a Transcarpátia autoproclamou-se uma república independente às dez da manhã e foi invadida pelo exército húngaro ao anoitecer, sendo formalmente anexada no dia seguinte. Foram vinte e quatro horas de auto-determinação imaginária, numa região que ao longo dos séculos fez parte do Principado da Galícia, do Império Austro-Húngaro, da Turquia Otomana, da Checoslováquia, da Eslováquia, da Hungria, da União Soviética e da Ucrânia.

Portanto uma equipa vinda de lado nenhum ganhou um torneio para o qual nem sequer se apurou. Tal como a Dinamarca no Euro-92, a Carpatália foi convidada pela organização para suprimir uma desistência de última hora - não de um país que tinha subitamente deixado de existir, como a Jugoslávia em 1992 (um risco que os membros da ConIFA, para ser franco, nunca correm), mas de um não-país cujos jogadores simplesmente não conseguiram angariar fundos para viajar até Londres.

Um resumo alargado da final pode ser encontrado no YouTube. Béla Fejér, o tal que já tinha desviado para a trave um golo feito, defendeu o penálti decisivo com um voo acrobático que tornou a Carpatália campeã de um mundo que não sabe muito bem se ela existe. Pode não ser a história futebolística mais importante do Verão; mas é certamente a que menos vezes inclui a palavra "França", e só isso é mérito suficiente.