A COVID e a importância dos Valores

A discussão sobre os valores é um tema interminável e sempre presente. Por vezes pensamos que discutir valores é quando só quando se fala de valores. Mas não: estamos a discutir valores sempre que tomamos uma das centenas de opções pragmáticas na nossa vida. Lembro-me a história de uma menina de 4 anos que estava a ter na sua escola sessões de "Filosofia para Crianças". Curiosa, a mãe perguntou-lhe, "Mas afinal o que é a Filosofia? A menina parou e, passado um momento, respondeu: "Estás a ver? Se estás a perguntar, isso já é filosofia!". Que excelente aproveitamento que esta menina teve das aulas. Mas regressando ao tema, a nossa vida quotidiana é sempre uma expressão de valores e por isso eles são tão presentes na nossa vida.

Edgar Morin, um jovem filósofo francês de 98 anos, tem desde há muito escrito sobre a "complexidade". Resumindo a sua vasta obra sobre este assunto, ele defende que vivemos cada vez mais em sociedades complexas, em que os conhecimentos se interpenetram, são "tecidos em conjunto" e ao mesmo tempo que se auto organizam.

É bem estimulante olhar a nossa sociedade como complexa em lugar de olhar o que se passa com óbvio, evidente e linearmente racional. Olhar a nossa sociedade e nosso conhecimento como complexo traz para a discussão muitas abordagens que, de outra forma, seriam consideradas espúrias ou despropositadas. E este é talvez um primeiro e basilar aspeto da nossa reflexão.

Se as nossas sociedades são complexas, elas exigem um esforço de seleção. Selecionar não é escolher algumas coisas com desprezo de outras, é entender que face à análise de uma dada realidade e necessidade, é preciso recrutar prioritariamente algumas ideias ou alguns recursos sabendo que os outros que não foram selecionados mantêm a sua pertinência e possível utilidade noutros contextos. Não é possível selecionar tudo o que faz parte de uma sociedade complexa: ficaríamos bloqueados por decisões que provavelmente se inibiriam umas às outras e que, a serem implementadas, interfeririam com a realização de outras. A partir da complexidade é preciso selecionar para poder atuar. Este seria o segundo aspeto.

Mas selecionar com base em quê? Por vezes lemos opiniões semelhantes às que Fukuyama emitiu sobre o "fim da História". Há opiniões que realçam o "fim da política" no sentido em que os valores estão fora de moda e precisamos sim é de decisões ditadas pelo pragmatismo, pelo bom-senso, pela objetividade. Nada mais enganador. Qualquer decisão "racional" tem a sua própria racionalidade ancorada em valores bem definidos. Assim, uma dada decisão pode privilegiar a economia provada, o bem-estar público, a universalidade dos Direitos, uma valorização dos mais frágeis, etc... Tentar que o pragmatismo se sobreponha aos valores, é uma estratégia capciosa (infelizmente cada vez mais bem-sucedida) para concretizar políticas que se disfarçam de "não política".

Teríamos assim estes três níveis: complexidade, seleção e valores.

Que tem esta reflexão a ver com a pandemia de Covid que atravessamos? Sigamos estes 3 níveis.

Antes de mais, esta pandemia alertou-nos para a complexidade de organização da nossa sociedade. Começamos a entender melhor que "uma coisa influencia outras coisas" que nem sequer tínhamos pressentido. Entendemos que a vida das escolas, dos hospitais, do lazer, dos restaurantes, do trânsito, das finanças do Estado, das relações internacionais, do emprego, da nossa vida doméstica, etc. etc. tudo se influencia mutuamente e até de formas que antes da pandemia, não eram percetíveis.

Um segundo nível, o da seleção é igualmente muito presente. Perante esta complexidade, perante a premência das necessidades, perante os recursos disponíveis foi e é preciso realizar escolhas. Temos assistido a opiniões que se comportam como se não fosse preciso falar de escolhas: vamos dar tudo, agora e a todos. Muitas vezes estas opiniões "radicais" vêm embrulhadas em tonitruantes palavras de defesa dos cidadãos. Só que... optam por não fazer escolhas. Estas opiniões seriam pertinentes num mundo (nem falo de um país) que não fosse este: um mundo em que os recursos fossem suficientes em tudo e que pudessem chegar no momento certo a todos. Procurar convencer que não se deve direcionar, escolher o que é mais urgente e prioritário parece uma demagogia que só é útil, como todas as demagogias, para ser usada quando nós próprios não temos de assumir responsabilidades de decisão.

E finalmente os valores. Quais são os valores que presidem à seleção que temos forçosamente de fazer? Aqui temos encontrado múltiplas escolhas. Darei 3 exemplos provenientes da Educação: 1. Uma universidade brasileira optou por não dar qualquer aula online aos seus alunos, porque alguns deles não tinham acesso aos instrumentos tecnológicos. Assim pensa seguir o princípio de não favorecer uns face a outros, 2. Podemos dar mais a quem mais precisa. Por exemplo: há alunos com necessidades educativas específicas que estão a receber além das aulas regulares, aulas suplementares. 3. Podemos fazer o que é possível fazer com os recursos existentes, sabendo que há alunos com menores recursos para seguir o ensino e procurando, sempre insuficientemente, colmatar estas falhas.

Estamos certamente conscientes que esta pandemia é "alimento para o pensamento" para quem quer pensar e atuar no sentido de termos uma sociedade mais justa e com menos desigualdade. Com os valores de equidade e justiça social.

Conselheiro Nacional de Educação e Presidente da Pró - Inclusão - Associação Nacional de Docentes de Educação Especial

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