Razões de Estado

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Nesta semana ficámos a saber que Portugal depende em quase 60% das suas importações de petróleo da Rússia, do Azerbaijão, do Cazaquistão e da Arábia Saudita, uma nova grelha energética com que o monopólio da Galp brinda o enquadramento geopolítico português. Assim de repente, e sem olhar para o mapa, até parece que estamos mais próximos do mar Negro do que do Atlântico, mas o tempo político em Portugal não está para temas menores, como sabemos. Por estes dias, soubemos também que os EUA e a NATO vão reativar a Segunda Esquadra e criar um novo comando naval em Norfolk, na Virgínia, uma decisão estratégica com vista a dissuadir o aumento das incursões russas na região. Mas não só: é o reconhecimento formal da estupidez que foi decretar a morte do Atlântico na política internacional, como se não fosse fundamental ao desígnio hegemónico americano, permanentemente assumido administração após administração, ser simultaneamente a grande potência do Atlântico e do Pacífico para preservar esse estatuto. E aqui, por mais voltas que a vida dê, a China tem uma desvantagem competitiva. Mais: por ser muito mais fácil aos EUA continuarem a ser hegemónicos mais no Atlântico do que no Pacífico - menos atrito, melhores relações, menos ameaças - é que Portugal joga um papel de estabilizador regional e de elo transatlântico fundamental.

Em primeiro lugar, aproveitando a revolução energética e a dinâmica comercial estáveis e em crescimento no Atlântico. Os EUA são e vão ser ainda mais o centro da geopolítica energética global (sobretudo gás), quadruplicando a sua produção nos próximos três anos e posicionando-se como um grande exportador para a Europa e para a Ásia, onde estarão os dois grandes importadores globais, China e Índia. Hoje, Portugal é já o segundo principal destino europeu de GNL americano e Sines tem aí um papel estrutural, embora ainda muito longe da sua capacidade operacional máxima em armazenamento e exportação energética, bem como no potencial logístico que oferece para fazer o necessário transporte de curta escala para o Norte da Europa ou para outras regiões. Um bom e credível parceiro na expansão do novo terminal (indiano ou americano, por exemplo) é fundamental para sinalizar a nossa amplitude na captação de investimento estrangeiro para lá dos suspeitos do costume. Esse sinal, aparentemente económico, terá um alcance geopolítico tremendo e será visto como um elemento que definirá a nossa autonomia decisional, a nossa visão e a nossa ambição nas rotas energéticas e comerciais das próximas décadas.

Em segundo lugar, aproveitando o regresso do Atlântico ao centro do debate estratégico da NATO e dos EUA. Erradamente, Portugal foi reduzindo a relação com os EUA praticamente à Defesa e excessivamente acomodada à dimensão aeronáutica das Lajes. Ora, se a tecnologia já reduziu essa relevância, a verdade é que a tendência do comércio e da segurança continuará a privilegiar as rotas marítimas e a robustez naval. A China tem feito uma aposta extraordinária nessa vertente e os EUA jamais abdicarão da sua incomparável vantagem competitiva como guardião dos mares. O orçamento russo para a próxima década - e que pode dar cabo de vez do regime se a economia não melhorar - vai tentar acompanhar Pequim e Washington, ficando os europeus no eterno dilema entre maximizar as suas capacidades em cooperações reforçadas alargadas, coligações de vontades de geometria variável, ou ainda não fazer nada. Portugal tem aqui oportunidades interessantes, sendo a opção descartada a da passividade.

Por um lado, calibrar com outra dinâmica as relações políticas, comerciais e energéticas com os três grandes do Atlântico Norte - Canadá, EUA e México. Mais visitas de Estado, mais contactos empresariais, mais intercâmbio científico, e mais investimento direto bilateral, sem esquecer o nosso papel de promotor de bons acordos comerciais e regulatórios da UE, a qual tem competência exclusiva nessa matéria. Se o acordo com o Canadá está em vigor e o do México está em reestruturação avançada, não devemos deixar morrer uma espécie de TTIP minimalista, até porque há setores na administração Trump que aqui e ali vão levantando o véu. Isto é, posicionar-nos como promotor ativo e positivo dos bons padrões comerciais no Atlântico, os quais terão na energia um elemento central.

Por outro lado, num contexto absolutamente singular em que os nossos dois grandes aliados atlânticos (EUA e Reino Unido) estão numa inflexão de confiança quanto às duas organizações estruturais à democracia portuguesa (NATO e UE), o pior sinal que Lisboa poderia emitir é de falta de compromisso com ambas, seja pelo silêncio (por vezes a comunicação com mais impacto em diplomacia), seja pela frouxidão, ou ainda por uma súbita escolha por interesses terceiros. Não estou com isto a dizer que é essa a vontade do governo português, mas aproxima-se um ciclo eleitoral e todos os alertas são poucos. Lamento dizer, por mais razões de mercado que existam, que o interesse da Rússia de Putin ou do Azerbaijão na sustentabilidade da democracia portuguesa, da NATO e da UE é igual a zero.

Dir-me-ão, e com inteira razão, que a Alemanha tem uma relação igualmente cínica com Moscovo, que oscila entre a aprovação de sanções e a assinatura de gasodutos. De acordo, cinismo é, aliás, uma das definições possíveis da política. Acontece que Portugal não é a Alemanha. E mesmo estando numa geografia política mais periférica, ela tem um potencial diferenciador da esmagadora maioria dos seus pares europeus. Se não a aproveitar, não será nem mais autónomo, nem mais livre, nem mais capaz na Europa.

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