A grande reforma
Os dados estão lançados. O governo vai propor, dentro de dias, um grande programa de descentralização da administração pública. Será talvez a mais importante, quem sabe se a única reforma significativa a iniciar por este governo. Ainda bem! Portugal necessita de descentralização, de subsidiariedade e de eficácia. Pode também acontecer que outros grandes males, como os projectos megalómanos e a grande corrupção, sejam assim contrariados. Pequenos projectos mal pensados e pequena corrupção não podem ser mais nefastos.
Bem sabemos que é ano de eleições autárquicas e que o governo não resiste a ir buscar louros para se apresentar de folha limpa ao eleitorado. Nenhum governo resiste. Mas esta solução é melhor do que uma virtuosa inércia pré-eleitoral. Como se trata de eleições autárquicas, quem vai ficar a ganhar é a autarquia. Especialmente os partidos que têm força autárquica. As eleições e a democracia servem também para isso, fazer comércio com os eleitores: dou-te obra, subsídio, escolas, piscinas e cheques e tu dás-me os votos!
O ministro Eduardo Cabrita, talvez o mais brilhante e autoritário tecnocrata deste governo, tem já o seu projecto negociado em múltiplas instâncias e várias instituições, mas também em encontros discretos entre partidos e nas reuniões paralelas dos grupos de trabalho do governo com o Bloco e o PCP. É provável que tenhamos lei dentro de poucas semanas. Há décadas que este ministro é um defensor obstinado da regionalização. Noutra oportunidade, perdeu. Agora, aprendeu a lição: irá devagar, furtivamente, a par e passo, fugindo às maiorias qualificadas e aos referendos. E chamando-lhe, para já, descentralização.
Esta é a grande reforma possível. Não há dinheiro, não há grande consenso, nem sequer maioria estável. Por isso, é a reforma que se pode fazer. Ainda bem. Esperemos que se consiga autoridade suficiente. E consenso alargado, pelo menos para umas disposições. Não é obrigatório o acordo total, completo e com toda a gente. Mas é indispensável que, para tão importante reforma, haja legitimidade reforçada e autoridade política. A descentralização é importante. E Portugal precisa dela!
Por isso, com consenso pouco alargado e uma maioria muito disputada, não teremos, infelizmente, uma reforma audaz. Professores já protestaram. Médicos também. Numerosos funcionários e serviços centrais recusam passar para a periferia, o local e o regional. Muito vai continuar na administração central. Passam umas competências, umas faculdades, algum dinheiro, mas não muitos serviços centrais nem estes funcionários especiais (o maior número) que são os médicos, os enfermeiros e os professores. A verdade é que os sindicatos não querem e não deixam. Um sindicato que se preze quer ter diante de si um só patrão, o ministro. Assim continuará a ser. A respectiva tutela fica com o governo central. É descentralização de gato escondido.
É um princípio de regionalização. A eleição dos presidentes é exemplo calhado. Os presidentes das áreas metropolitanas serão desde já eleitos directamente pelo povo, ao mesmo tempo do que as autarquias. É claramente um princípio de soberania e de uma sólida legitimidade. A partir daí, não será possível voltar atrás. É um princípio irrevogável de regionalização, vai ser e será fonte de problemas e quezílias. Ainda por cima, esta eleição vai criar conflitos muito sérios com os futuros presidentes das CCDR, isto é, das comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional. Também eles serão eleitos, mas agora de modo indirecto: ficarão na dependência eleitoral dos autarcas. Não é preciso fazer um desenho: os potenciais conflitos, as perturbações, a sobreposição de competências e a dualidade de legitimidades serão efectivas. Será um pequeno passo em frente. Esperemos que não dois atrás.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.