Poker face
Los Angeles tem destas coisas. Às seis da tarde alguém pergunta se queremos ir à Sunset Boulevard ver o novo filme de Aaron Sorkin com Jessica Chastain, que vai estrear-se no dia de Natal. Às oito estamos sentados no cinema. E às dez e meia, depois de terminada a sessão, Sorkin e Chastain aparecem para uma sessão improvisada de perguntas e respostas, vestidos a rigor porque vieram da cerimónia Governors Awards. Só mesmo em Hollywood.
Molly's Game é a estreia de Sorkin como realizador e conta a história verídica de Molly Bloom, que ficou conhecida como a princesa do póquer e escreveu um livro a contar tudo. Durante oito anos em LA e dois anos em Nova Iorque, Molly organizou noites de jogo milionárias, que acabaram por pôr o FBI à porta de sua casa e podiam tê-la enviado para a cadeia durante muito tempo. A premissa é uma história interessante, dramática, que deixa entrever um submundo incrível de vício, drogas e muito dinheiro. Mas é a mensagem indireta do filme que deixa um sabor quase melancólico na boca, numa altura em que tantas figuras proeminentes da indústria caem como castelos de cartas: a inesperada integridade de Molly Bloom.
Nem Sorkin nem Chastain quiseram branquear a princesa do póquer, que tomou péssimas decisões num ambiente de elite a tresandar a decadência. Quiseram contar o que os tabloides não perceberam quando a história de Molly explodiu por todo o lado.
"Quando conheci a Molly, não estava à espera de ficar impressionado. Acreditei nos tabloides. Pensei que ela estava a tentar fazer dinheiro com o livro sobre uma década no meio de celebridades", disse Sorkin. "Em menos de dez minutos percebi que estava errado, que esta era uma mulher cheia de integridade, que era brilhante, forte - não dura, que é uma afetação que se faz quando não se é forte."
Essa integridade só se confirma lá para o final, pelos olhos de Idris Elba, que interpreta o advogado de Molly. Nesta altura, o FBI confiscou todo o seu dinheiro, mais de quatro milhões de dólares, e o procurador-geral está a tentar fazer um acordo com ela. O dinheiro de volta e imunidade em troca dos nomes, histórico e mensagens de todos os milionários que passaram pelas suas noites de póquer. Molly recusa. É preciso ressalvar que ela tentou ter um negócio legítimo, pagando impostos e mantendo empregados, lucrando basicamente com as gorjetas generosas dos jogadores. O problema é que pelas suas noites passaram elementos da máfia russa. Ela própria acabou por quebrar algumas regras, mas podia ter-se safado aceitando o acordo e expondo as celebridades que jogaram à sua mesa.
Ao invés disso, deu-se como culpada. "Porquê?!", gritava Idris Elba, o advogado. "Para proteger o meu nome. É tudo o que tenho." Sorkin acabou por ver na verdadeira Molly uma heroína num sítio inesperado. E a sua história de poder e desgraça levanta tantas questões interessantes quanto a monumental interpretação de Jessica Chastain.
"Quando olhei para a jornada em que a Molly tinha estado, comecei a perceber a máscara que ela usou", disse a atriz. Há dois momentos interessantes, em que homens diferentes dizem a Molly que ela não está a usar as roupas apropriadas. A forma como este argumento olha para o género reflete-se nisto: uma mulher a tentar encontrar sucesso numa indústria onde homens ricos e poderosos ditam todas as regras.
O que Chastain também sublinha, de forma inteligente, é que Sorkin tem uma carreira gigante e pode fazer qualquer projeto que lhe dê na real gana. Escolheu escrever um argumento centrado numa mulher, contratou mais mulheres para trabalharem no filme, e escolheu Idris Elba para representar a sua própria viagem em toda esta história (vemos pelos olhos do advogado a forma como Sorkin mudou a sua opinião sobre Molly). "Espero que isto inspire outros realizadores, que não parecem estar interessados em histórias de mulheres", arriscou Chastain.
É muito apropriado que Molly's Game tenha sido escolhido pelo AFI - American Film Institute - para encerrar o seu festival de cinema que decorre agora em Hollywood, em substituição de All the Money in the World, após a queda de Kevin Spacey. Bem sei que há quem esteja já cansado deste tema, e começo a ouvir argumentos do tipo "daqui a pouco já é tudo assédio". Percebo. Agora imaginem o cansaço das mulheres com algo que lhes acontece constantemente na vida real. Para elas, tal como para Molly, não haverá mais poker face.