Não estamos em 1817 nem este país impõe o recato ou aceita a lapidação. Não há justificação possível para ainda termos de ler acórdãos como o que tem estado a indignar o país por estes dias. Um juiz arroga-se o direito de considerar o adultério como atenuante para a violência doméstica. Não é brincadeira. E basta ler as pérolas que Neto de Moura liberta no seu tribunal - com justificações mascaradas de uma religiosidade que não tem paralelo real e apenas serve para legitimar as suas próprias crenças cegas e pré-históricas - para entender que o assunto é sério..A lei portuguesa diz que a violência doméstica é um crime público. Mas aos tribunais isso parece levantar algumas dúvidas. A sociedade indigna-se com as estatísticas que ainda apontam para mais de cem mulheres vítimas de maus-tratos por semana e uma média superior a 20 assassinadas todos os anos. E no entanto muitos casos chegam a tribunal e terminam com o agressor solto, até louvado pelo serviço educativo, e a mulher achincalhada e atirada de volta para os punhos de um animal. É assim que se trata a violência doméstica quando ela chega às mãos de um desses magistrados que acreditam que uma mulher adúltera merece apanhar, que uma mulher que usa minissaia está mesmo a pedir para ser violada..O problema são os juízes, sim. Este, Neto de Moura, mas também os outros iguais a ele, que proferem sentenças óbvia e grosseiramente contrárias à própria lei porque se acreditam moralmente superiores à sociedade e às suas regras. Mas também há aqui responsabilidades do Conselho Superior de Magistratura, que fecha os olhos sempre que a lei e a ética são amachucadas, que se escusa de intervir quando os deveres dos juízes são quebrados e, ao tentar justificar o injustificável, abdica da missão de manter o superior valor da instituição que são os tribunais. Dizer que "nem todas as proclamações arcaicas, inadequadas ou infelizes" em sentenças assumem relevância disciplinar já seria mau se as circunstâncias específicas que dão origem a esta declaração não fossem tão graves. Mas são-no. Falamos de um crime e levado a cabo pela última pessoa que poderia cometê-lo. Um juiz que dobra a lei às suas crenças e considera aceitável uma agressão se a vítima for uma adúltera. Um magistrado a incentivar novas agressões, a validar maus-tratos. A gravidade disto é inegável. E seria bom que se começasse por reconhecê-lo. Ninguém quer fogueiras. Apenas justiça.