O cronista recorre à memória, quando a atualidade o excede. A crise política é o elefante que não está já só no meio da sala: ele passeia-se agora por toda a sala, a esmagar recordações e realidades, esperanças e promessas..Estamos nas vésperas do cinquentenário do 25 de Abril. Como podemos olhar com confiança para o futuro, enquanto o elefante continua a sua marcha arrasadora à volta da sala? Como poderemos defender a pequena luz bruxuleante (Jorge de Sena) dessa liberdade que reconquistámos e não queremos perder? Como manter a esperança no meio da desolação?.Num momento em que as ameaças à democracia nunca foram tão fortes, lembro-me da pergunta canónica de Baptista Bastos, que deu título a esta crónica, e escrevo de uma memória feliz contra um presente sombrio..No jornal República, onde eu colaborava então, a convite do Mário Mesquita, os nossos colegas comunistas defendiam a inconsistência da "ilusão militarista", porque só um "levantamento nacional armado" (que não víamos muito bem donde viria) poderia pôr fim à ditadura. Álvaro Guerra e Carlos Albino, por dentro da conspiração, abanavam a cabeça e sorriam daquela juventude convencida e dogmática. Eu, sem as informações, ainda que crípticas, de Melo Antunes, que fora transferido para os Açores, e considerando o falhado "Golpe das Caldas" de 16 de março, tendia para o ceticismo..Nesse tempo, ter um telefone em casa implicava uma longa espera, e havia já dois anos que eu tinha pedido a sua instalação, sem consequências. Por isso, foi a vizinha de cima que veio bater à minha porta naquela manhã e me disse para ligar o rádio..Lembro-me de andar todo o dia a pé pela cidade e ver as ruas cheias de gente deambulante e excitada, como quem acorda de um sonho e tarda a reconhecer a realidade que o rodeia. A liberdade espalhava-se pelas ruas, brilhava no reflexo das armas e dos capacetes dos militares, dividia-se nas multidões várias que corriam, no boca a boca que nos trazia as boas notícias e os desvairados rumores, ressoava nos aplausos e nos gritos de alegria, como nos tiros perdidos, aqui e ali..Não fui para o Largo do Carmo, fiquei pela redação do República, na Rua da Misericórdia. Os populares vinham aplaudir às nossas janelas e em seguida desciam o Chiado em direção ao edifício da sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, donde vieram os primeiros tiros e os únicos mortos daquele dia. De todo os outros jornais saíam edições anunciando "não-visado pela Comissão de Censura", com a alegria de uma primeira vez. Lembro-me de nesse dia almoçar no restaurante Mealhada com um grande grupo e ficar confuso por podermos falar de política em voz tão alta, sem recear os ouvidos à volta, tal como, quando da chegada de Mário Soares a Santa Apolónia, continuei com o reflexo de procurar ao longe, atrás da manifestação, os vultos da polícia de choque, para poder preparar a fuga..Os PIDEs, tão presentes nas nossas vidas e nos nossos medos, espreitando das mesas do café para as nossas mesas, espreitando por dentro das manifestações e das reuniões de alunos, entrando violentamente, à bofetada e ao pontapé, nas salas de estudo que tínhamos transformado em sedes de propaganda clandestina, disparando por vezes e matando, como fizeram ao colega Ribeiro dos Santos, os PIDEs tinham desaparecido da nossa vista, detidos para não serem massacrados..De que valem estas recordações do passado nos dias cinzentos que estamos a viver? Talvez elas possam reacender a pequena luz bruxuleante, talvez lembrar Abril seja hoje, mais do que uma comemoração, um ato de resistência. Contra o elefante no meio da sala, contra a degradação da democracia, contra tudo o que contra Abril se levanta. Ou, como escrevia o poeta Manuel Gusmão, contra toda a evidência em contrário a alegria..Diplomata e escritor