O turno da noite

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A descrição que aqui vos faço, corresponde à realidade de um 1.° turno (00:00/08:00) sem distorções ou exageros. Um retrato fidedigno em que qualquer polícia com funções de patrulhamento, de norte a sul do país e ilhas (exceto nas Berlengas) se reverá.

Meia-noite, cumpro o ritual do início de serviço, o mesmo independentemente do turno. É-me informado pelo graduado de serviço o "ramerrame" do costume: face à escassez de efetivo, duas esquadras limítrofes não terão carro-patrulha (CP), por tal motivo, a área adstrita às mesmas, ficam à minha inteira

responsabilidade. Uma prática há muito reiterada e que me faz sentir um (DDT), Dono Disto Tudo.

Foram apenas dez os minutos que a Central-Rádio demorou a incumbir-me da primeira ocorrência. Esta com a necessidade de apoio de uma (EIR) Equipa de Intervenção Rápida reduzida a quatro elementos ao invés dos oito conjeturados. Algo previsível e que nos deixa a todos aquela sensação de vulnerabilidade, mas em nada impeditiva para que avançássemos. Afinal, "somos poucos mas bons" dizem alguns, discordam (e não se pronunciam) os demais. A razão deste "contratempo", é a de sempre, a impreterível necessidade de escalamento de uns e o descanso de outros, isto face aos inúmeros eventos (privados) com maior incidência nas feiras, concertos e romarias.

Ainda com a "adrenalina a mil", a segunda solicitação da Central deve-se de um cidadão ter encontrado um bonito canídeo de pequeno porte, suspeitando ter sido abandonado. Face à hora, as diligências por ele efetuadas (junto dos serviços camarários) foram infrutíferas. Restavam-lhe as da polícia, que também não tiveram os resultados por ele almejados. Após a minha explicação - que os canídeos, naquelas circunstâncias, são responsabilidade exclusiva daqueles serviços, mas que àquela hora os mesmos se encontravam encerrados, apesar de esclarecido, não conseguiu deixar de transparecer a sua frustração. Nem eu a minha.

E como "não há duas sem três"... Um conflito laboral. Dizem ter solicitado a presença da polícia há cerca de cinco horas, mas que não terá sido possível dar resposta, (informação da Central). Acontece... Mas como nos diz o ditado "mais vale tarde do que nunca", dirigi-me ao local e... "voilà", ninguém por lá.

O tempo vai passando e continuo a "fazer piscinas olímpicas" entre as "minhas" três áreas. Já quase não me sinto e mal me conheço. Proativo é o meu nome do meio, Reativo o apelido.

Segue-se a ocorrência "da praxe", a violência doméstica. Aquele serviço que tem tanto de delicado e dramático como de burocrático, ocupando imenso tempo "a quem calhou a rifa".

Ainda tempo para uma reclamação de ruído na via pública (resolvida de forma informal) - um impedimento de acesso a residência, concretamente - uma viatura estacionada a bloquear a entrada ao proprietário. A Central-Rádio contatou a Polícia Municipal (PM), uma vez que é uma ocorrência da responsabilidade da autarquia, como resposta "não temos meios para nos deslocarmos ao local". Fui lá eu, mesmo sem meios...

E, como se não bastasse, uma tentativa de suicídio, uma reclamação de música em alto som e o apoio a colegas numa desavença entre vizinhos.

Apesar de tudo, vejo já a luz fundo do túnel. Falta "só" elaborar o expediente que não pode ser adiado, enviar uns "mails" a algumas entidades e preencher e remeter relatório de serviço. Algo que, diga-se de passagem, para um profissional a caminho dos cinquenta (sem ver a cama há mais de 12 horas), torna-se um feito extraordinário. Quase um ato heróico.

Muitos serão os que sabem da exigência, penosidade e especificidade deste turno. Ao fim de vinte e cinco anos de serviço por turnos e de um incalculável número de noites em claro, face às dinâmicas, complexidade e défice das condições de trabalho, sinto-me "de rastos". Exausto!

Há muito o sol surgiu no horizonte. Amanhã (logo) outro 1.° turno (00:00/08:00) me espera. Terei de dormir à pressa, pois antes tenho um serviço remunerado (cinco horas). Dizem que as três que vou "passar pelas brasas" são responsabilidade de um tal "Simples". Acreditem, nem o conheço.

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