O traficante de droga, essa “vítima”

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Na semana passada, numa conferência de imprensa em Jacarta, ao falar sobre o combate ao tráfico de droga, o presidente da República Federativa do Brasil, Lula da Silva, disse o impensável: “Toda vez que a gente fala de combater as drogas, possivelmente fosse mais fácil a gente combater os nossos viciados internamente. Os usuários, os usuários são responsáveis pelos traficantes que são vítimas dos usuários também.” Em português de Portugal, “usuários” são os consumidores de droga. Logo, o que o presidente do Brasil disse foi que os traficantes de droga são vítimas dos consumidores. Vejamos a definição de “vítima” no dicionário de Língua Portuguesa Houaiss: “1.ª ser humano ou animal morto em sacrifício a uma divindade ou na execução de algum rito sagrado; 2.ª pessoa ferida, violentada, torturada, assassinada ou executada por outra; 3.ª p.ext. ser vivo, mais freq. pessoa, que morre ou é afectado de modo traumático por acidente, desastre, calamidade, epidemia, guerra etc.; 4.ª pessoa que é sujeita a opressão, maus-tratos, arbitrariedades; 5.ª pessoa que sofre por sucumbir a vício ou sentimento próprio ou de outrem; 6.ª fig. qualquer ser ou coisa que sofre algum dano ou prejuízo ; 7.ª jur. sujeito passivo de ilícito penal; 8.ª jur. pessoa contra quem se comete qualquer crime ou contravenção”.

A minha pergunta é: em qual destas acepções o presidente brasileiro estava a pensar quando achou, verdadeiramente, que um traficante é uma vítima? Subsequentes questões: será a 4.ª, tendo em vista as péssimas condições de vida que ele não conseguiu ainda erradicar do seu país, levando as pessoas ao desespero? Ou a 5.ª, os traficantes serem vítimas do vício dos consumidores? Talvez a 6.ª, em que os traficantes sofrem danos ou prejuízos quando os correios de droga morrem por intoxicação ou são presos? Ainda há as acepções jurídicas, 7.ª e 8.ª, o que leva a ponderar se os traficantes, quando presos, são vítimas do sistema jurídico ou penal? Entretanto, devido ao impacto negativo das suas palavras nos média, já se retratou, dizendo, na rede social X, “fiz uma frase mal colocada nesta quinta e quero dizer que meu posicionamento é muito claro contra os traficantes e o crime organizado”. Nem foi uma frase mal colocada, nem foi um posicionamento claro: foi uma declaração impensável e um posicionamento dúbio. Foi uma afronta e um desrespeito às verdadeiras vítimas do flagelo que é o tráfico de droga. E é uma pena que o Brasil, já há pelo menos duas décadas, não tenha um presidente digno dos destinos e à altura deste grande país.

Professora auxiliar da Universidade Autónoma de Lisboa e investigadora (do CIDEHUS).

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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