Esta é uma pergunta que tem inquietado os cientistas sociais desde que começaram a estudar o terrorismo. Desde os Anos 70 do século passado, os cientistas sociais têm-se dedicado à questão do terrorismo, inicialmente acreditando que apenas indivíduos com distúrbios mentais ou problemas de personalidade se poderiam envolver em tais atos. No entanto, ao analisar terroristas detidos, de imediato se percebeu que os seus atos eram deliberados, intencionais e racionais, motivados pela procura de objetivos políticos e ideológicos. Esta compreensão contribuiu significativamente para a definição de terrorismo, que passou a ser entendido como um ato que usa violência para atingir objetivos políticos de várias ordens..A seguir aos ataques do 11 de Setembro de 2001 - os mais mortíferos da História, que mataram quase 3000 pessoas, além dos milhares de feridos -, os académicos começaram a procurar explicações diferentes para a magnitude e sofisticação daquela violência. Desta vez, ao invés de investigarem fatores intrapsíquicos, os académicos começaram a estudar os fatores contextuais e grupais que explicassem a radicalização e a prática de violência. Entre vários modelos que foram apresentados, uma teoria da Psicologia Social tornou-se bastante útil - a Teoria da Desvinculação Moral, definida por Albert Bandura..A desvinculação moral refere-se aos mecanismos psicológicos que regulam as crenças das pessoas, justificando comportamentos desumanos e violentos sem sentimentos de autocondenação e reprovação. À medida que as pessoas crescem e se desenvolvem, entram em contacto com padrões morais, através da socialização, que atuam como guias para regular seu o comportamento moral, sendo assimilados e assumindo uma forma de autocondenação. Isso significa que as pessoas tendem a fazer coisas que acreditam ser corretas e evitam fazer coisas que violem os padrões morais aprendidos, porque, além dos mecanismos externos de controlo social, eles promovem autocondenação e autopunição. Estes mecanismos autorreguladores operam de forma antecipada ao comportamento. Ou seja, a agência moral tem dois aspetos: o primeiro é inibitório e impede as pessoas de se comportarem de maneira desumana; o segundo aspeto é proativo, incentivando comportamentos morais normativos. No entanto, existem algumas circunstâncias em que esses mecanismos morais autorreguladores se desvinculam ou desregulam e permitem que indivíduos cometam violência contra outras pessoas. Existem vários processos que levam à desvinculação moral. Aqui, descreverei dois. .A desumanização é um mecanismo que reduz a regulação moral e consiste no ato mais extremo de tratamento imoral contra outras pessoas. Os seres humanos tendem a tratar outros membros do seu grupo com mais preocupação moral do que membros de um grupo externo. Esse processo é mais forte quanto mais uma pessoa se identifica com o seu grupo. Perceber outra pessoa como tendo a mesma humanidade faz com que os indivíduos ajam com empatia e com um sentido de obrigação social. Por esse motivo, é difícil cometer violência contra pessoas “humanizadas”, ou seja, com quem se sente empatia. Assim, a desumanização é o ato de tratar outras pessoas como menos do que humanas, sem emoções, sem sentimentos e sem alguma característica humana que lhes configure empatia..A atribuição de culpa é outro mecanismo usado para reduzir a preocupação moral e infligir mais facilmente violência. Este processo ocorre quando as pessoas se percebem obrigadas a cometer violência porque a vítima “provocou” esse tipo de conduta. Dessa forma, ao atribuir a culpa às vítimas pelo sofrimento infligido nelas, o comportamento prejudicial é visto como uma reação defensiva e moralmente justificada. Evita-se a autocondenação não apenas culpando as vítimas, mas também percebendo o comportamento violento como uma necessidade derivada da alegada provocação, em vez de uma decisão pessoal..Uma maneira de atribuir culpa às vítimas pela violência contra elas é através de um processo de demonização. Esse processo ocorre quando membros do grupo externo são vistos como malignos, o que implica que os indivíduos são despidos de sua consideração moral. Isso facilita o cometimento de violência contra eles, justificando qualquer meio violento adotado com base na perceção de que esse indivíduo é visto como malévolo e culpado por isso, portanto, não merece qualquer consideração moral. A demonização é, assim, uma violência moralizada, que vai além da desumanização, porque as vítimas são vistas como incapazes de mudar sendo, desta forma, culpadas pela violência infligidos contra elas..Para compreender melhor esses mecanismos, deixo como exemplo a propaganda jihadista, que frequentemente retrata as pessoas ocidentais como desprovidas das suas características humanas, desumanizando-as ao nível de animais. Por exemplo, é comum que as vítimas do terrorismo sejam rotuladas como “porcos”, justificando a violência contra elas com base nisso. Além disso, a narrativa jihadista frequentemente retrata as pessoas ocidentais como “apóstatas” ou “infiéis”, enquadrando-as como perpetradoras de atos irreconciliáveis com a ideologia promovida pelas organizações terroristas de inspiração islamista. Consequentemente, a culpa é atribuída às vítimas, racionalizando e facilitando a violência terrorista infligida a elas. .Todas as formas de terrorismo e de extremismo utilizam estes mecanismos na sua propaganda para radicalizar, recrutar e instruir a violência. E são estes mecanismos que permitem que pessoas, de forma deliberada e intencional, cometam violência contra outras, que são vistas como inferiores ou merecedoras de tal brutalidade. Além dos aspetos mencionados que facilitam a prática de violência brutal contra civis inocentes, sem qualquer relação prévia entre vítima e agressor, há um fator adicional frequentemente negligenciado: o uso de substâncias ilícitas. De facto, não é incomum que tanto terroristas, quanto soldados recorram ao consumo de drogas para manter ou intensificar a prática da violência, bem como para evitar que testemunhos desses atos os detenham. Durante o auge do Daesh, durante a ocupação territorial de partes da Síria e Iraque, vários autores indicaram o uso de Captagon, uma droga sintética, por parte dos terroristas. Esta substância está associada ao aumento da agressividade, estado de alerta elevado e redução do medo ou inibição..Recentemente, com os ataques de outubro em Israel por terroristas do Hamas, também foi reportado que alguns deles tinham vestígios desta droga, mostrando ser algo bastante comum. Portanto, diversos fatores, de natureza mental, coletiva e contextual, contribuem para a compreensão da prática da violência, e, embora o terrorismo e a violência possam desencadear respostas emocionais intensas, os académicos conseguiram fornecer explicações bastante racionais para o fenómeno da violência terrorista, que permite desenvolver programas de prevenção e apostar no reforço policial..O cenário atual apresenta uma interceção de fatores propícios ao surgimento do extremismo violento. Embora seja um tema cliché, a polarização é uma realidade, assim como o crescimento do ódio e o enfraquecimento do consenso e dos valores democráticos. Esses elementos são como faíscas soltas que podem incendiar ataques extremistas e até mesmo conflitos mais amplos. É crucial reconhecer que, no cerne de toda violência, está o ódio, seja ele de natureza racial, étnica ou religiosa. Considerando o panorama atual, não parece haver um travão à vista, a menos que o consenso, a coesão social e a moderação voltem a sentar-se à mesa.