O tempo das ilusões acabou

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A Europa já não ocupa um lugar de respeito na Casa Branca. A nova doutrina americana é clara: força acima de alianças. Trump valoriza o poder e a sua abordagem às relações internacionais assenta na realpolitik. A ideia de uma ordem internacional baseada na igualdade entre estados soberanos, nascida das cinzas da destruição causada pela Segunda Guerra Mundial, parece estar morta e enterrada. E a convicção de que a paz e a prosperidade das nações se alcançam através do comércio livre também.

A visão de Trump sobre a globalização assenta, porém, num pressuposto errado. Os Estados Unidos não são uma vítima. O motivo pelo qual têm suportado o grosso dos custos com a defesa da Europa e com a manutenção da ordem nos oceanos é simples: foram os principais beneficiários da globalização e da forma como o sistema financeiro mundial está montado. Essa largueza não se deveu a ingenuidade ou caridade das administrações americanas dos últimos 80 anos. A Pax Americana assenta no império do dólar. Os Estados Unidos conseguem gastar mais em Defesa do que todas as outras potências mundiais juntas porque dispõem da principal moeda de reserva global e financiam-se a custos muito baixos. E o dólar ocupa essa posição, apesar das alternativas surgidas nas últimas décadas, porque os Estados Unidos continuam a ser uma superpotência militar. É uma pescadinha de rabo na boca, como diz o povo.

Trump virou o tabuleiro e impôs novas regras do jogo. Poderá ser, ou não, bem-sucedido; o futuro o dirá. Mas é tempo de a União Europeia se habituar a esta nova realidade e de pensar como será o futuro.

Aqui chegados, importa trazer algum realismo às análises que se fazem e que, frequentemente estão centradas mais em questões de forma do que de substância. Há, pelo menos, dois mitos que merecem ser desfeitos.

O primeiro descreve a Europa como um continente decadente, habitado por pacifistas incapazes de lutar pelos seus países e convicções. Não é verdade, e a violenta História dos últimos 1500 anos demonstra-o. Os europeus sempre foram belicistas e, nas circunstâncias certas, voltarão a sê-lo. O período excecional de paz desde 1945 deveu-se, essencialmente, a dois fatores: a necessidade de recuperar de duas grandes guerras que deixaram a Europa em ruínas; e o entendimento com os Estados Unidos, que assumiram a responsabilidade pela segurança, cabendo aos europeus reconstruir os seus países e criar novos mercados que beneficiassem empresas dos dois lados do Atlântico. A própria União Europeia só existe porque os Estados Unidos mantiveram a paz, impedindo o ressurgimento das velhas rivalidades entre a França e a Alemanha. Desde o Plano Marshall até aos nossos dias, os Estados Unidos beneficiaram muito com a estabilizada e a prosperidade da Europa. Neste acordo tácito, não houve ingenuidades. As duas partes beneficiaram.

O segundo mito diz respeito à construção europeia. O Brexit e a ascensão de movimentos populistas e nacionalistas em países como França e Alemanha constituem uma ameaça séria ao projeto europeu. Existe, de facto, um risco não despiciendo de a União Europeia acabar como a URSS, eutanasiada a partir de dentro, da noite para o dia, após longos anos de estertor. Porém, a União Europeia tem algo que a URSS não tinha: capital acumulado que será mais do que suficiente para financiar a sua remilitarização e reindustrialização. Nesse sentido, a aparente fraqueza dos líderes europeus, que têm procurado afagar o ego de Trump, por vezes caindo no ridículo, poderá não ser mais do que uma manobra bizantina para ganhar tempo.

Para nosso bem, esperemos que assim seja e que haja uma verdadeira estratégia para relançar a Europa como bloco económico e geopolítico de pleno direito, capaz de defender os seus interesses e valores no plano global. A Europa não é fraca por natureza, mas por escolha política. E se quiser sobreviver como bloco, terá de assumir a sua responsabilidade histórica e estratégica. O tempo das ilusões acabou.

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