Provavelmente na história o século XX ficará lembrado com o tempo do direito internacional, da democracia e dos direitos humanos universais. Mesmo que, para nós, ainda seja também o século das grandes guerras mundiais e de grandes genocídios. Estas realidades, contudo, sempre existiram. Já a celebração, expansão e concretização de modelos democráticos, de sistemas de direitos fundamentais efetivos e de regras universais a serem respeitadas pelos Estados entre si nunca se havia verificado como na segunda metade do século XX. Com forte probabilidade, ainda se verá a segunda metade do século XX como um tempo glorioso e solidário, como a Humanidade nunca o conhecera, apesar de todas as suas limitações e injustiças. A realidade hoje é manifestamente outra. No contexto global recente, o aumento do populismo autoritário e o declínio da democracia constituem fenómenos interligados e preocupantes, que refletem um evidente retrocesso face aos princípios democráticos e aos direitos humanos afirmados no século XX. O populismo funciona agora como um catalisador para o surgimento de regimes competitivos autoritários, onde líderes populistas, frequentemente outsiders com bases eleitorais carismáticas e anti-establishment, procuram enfraquecer as instituições democráticas, manipular sistemas eleitorais e restringir o espaço da oposição. Líderes como Donald Trump e movimentos semelhantes na Europa e não só ilustram como o populismo de direita instrumentaliza essas tensões para reforçar narrativas nacionalistas e anti-imigração, vinculadas diretamente ao enfraquecimento dos direitos democráticos. Quase três quartos da população mundial vivem agora sob regimes autoritários e, pela primeira vez em décadas, as democracias são menos comuns no mundo do que as autocracias. Este cenário assinala um claro aumento da autocratização global e um enfraquecimento das liberal-democracias, sobretudo em regiões-chave para o equilíbrio global como a Europa, Ásia e partes da América do Sul. A imigração é frequentemente utilizada como moeda política por estes clubes autoritários e populistas. Investigações recentes destacam claramente como partidos populistas na Europa promovem a imigração como uma ameaça à identidade nacional, segurança e economia, fomentando um receio social que fortalece a xenofobia e alimenta políticas restritivas, mesmo que a realidade seja distinta. Nos Estados Unidos, a retórica anti-imigração da presidência Trump exemplifica este vínculo, reforçando uma visão dicotómica que opõe os supostos nativos a estrangeiros, e legitima a construção de muros e o endurecimento das políticas fronteiriças.A atual crise democrática insere-se num quadro maior de mudanças económicas, sociais e culturais, onde o neoliberalismo e a globalização têm ampliado desigualdades, contribuindo para o crescimento dos ressentimentos que os líderes populistas exploram para capturar apoio e minar os sistemas democráticos. Ao regressar a um individualismo egoísta, através da “lei da força” dos Estados e do apelo ao líder mais sonoro internamente, estamos perante o desafio de reinventar a defesa dos direitos humanos e da democracia liberal, num contexto onde o populismo e o autoritarismo se apresentam como ameaças persistentes. É isto que se diz, não é? Há demasiado tempo... Quando os líderes populistas são os únicos a conseguirem comunicar com boa parte do eleitorado, pela sua simplificação da linguagem e o seu apelo aos instintos mais básicos, algo terá de ser feito de diferente. Não basta dizer que é preciso “reinventar a democracia” – e continuar como se fez nas últimas décadas. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa