O século de Samora Correia

Até 1911, as comunidades religiosas não católicas estavam impedidas de comprar terrenos e de erigir templos com fachada para a rua. Samora Correia quer voltar ao século XIX, e pelos vistos não está só.
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Quem passe na rua Alexandre Herculano e procure a sinagoga de Lisboa pode ter dificuldades em vislumbrá-la: o edifício, por sinal muito bonito, está atrás de um portão branco incaracterístico. Pode-se pensar que o motivo é de segurança, mas não. A sinagoga foi construída e inaugurada no início do século XX, quando Portugal era uma monarquia teocrática  católica, e a lei proibia qualquer templo de outra religião de ter fachada para a rua. Aliás, proibia também as comunidades religiosas — as que eram admitidas, já que nem todas — de comprar terrenos, pelo que a escritura teve de ser assinada por um particular.

Foi preciso esperar pela queda da monarquia e pela chamada “lei de separação”— a separação entre Estado e Igreja Católica — para que as coisas começassem a mudar, desde logo instituindo como princípio que ninguém podia ser perseguido por motivos de religião.

Mas as coisas mudaram muito lentamente, porque pouco mais de uma década depois Portugal voltaria a ter, senão formalmente mas na prática, uma religião oficial. De tal modo oficial que o governo de Salazar, em decreto de 1936, ordenou que todas as escolas públicas ostentassem crucifixos nas salas de aula, isentou de impostos, por via da Concordata de 1940, os padres católicos, criou um regulamento de precedências nas cerimónias oficiais no qual o representante da Igreja Católica tinha uma dignidade equivalente ou até superior à do Presidente da República e banalizou a bênção de novas construções como parte das cerimónias de inauguração.

A Constituição democrática de 1976 veio afirmar de novo a separação entre Estado e igrejas mas na realidade a católica manteve o seu domínio: no início do século XXI ainda exigia que o Orçamento de Estado atribuísse verbas para construção de templos católicos e continua a passar a vida a pedir dinheiro para tal às autarquias (que não raro dão); os seus sacerdotes mantiveram a isenção de impostos até 2005 (e bem esbracejaram por esta acabar); a educação religiosa nas escolas públicas foi imposta até ao final dos anos 1980 (era preciso recusá-la expressamente, inconstitucionalidade declarada em 1987 pelo Tribunal Constitucional) e até hoje o Estado contrata professores escolhidos pela Igreja Católica; os crucifixos permanecem em muitas salas de aula (quando em 2005 se aventou que podiam ser retirados houve escândalo nacional); as Forças Armadas têm bispo; o Estado continua, como se constatou em 2023 com a “Jornada Mundial da Juventude”, a despejar rios de dinheiro e reverência na Igreja Católica, tanta reverência que é corriqueiro ver presidentes da Câmara e membros das polícias e Forças Armadas uniformizados a participar em procissões católicas.

De cada vez que alguém — fi-lo bastas vezes — questiona estas práticas e põe em causa a sua legalidade e constitucionalidade é taxado de jacobino odiento que quer “retirar a religião da esfera pública”, sendo invariavelmente invocada a “liberdade religiosa” e prescrita “tolerância”. Para demonstrar como quem defende o descrito estado de coisas tem pouca imaginação, fiz algumas vezes o exercício de aplicar a outras religiões os privilégios que são outorgados à religião católica: que diriam os tais defensores do que entendem como “liberdade religiosa” se, como sucede em festas católicas como o Corpo de Deus, lhes martelassem o juízo com altifalantes nas ruas a transmitir, todo o dia, cânticos e prédicas islâmicos?

Pois é. De repente, a “tolerância” que levam décadas a prescrever a ateus, agnósticos e crentes de outras religiões ante o império da religião católica revela-se como aquilo que nunca deixou de ser: a defesa de um privilégio excludente, de uma “norma” que nunca se questionou nem admite ser questionada. 

De repente, há autarcas que acham que podem proibir uma comunidade religiosa de comprar um terreno para erigir um templo. Porquê? Porque não gostam daquela religião. 

Não interessa, como nota bem Daniel Oliveira no Expresso, sobre o caso de Samora Correia e do levantamento que ali se verifica contra a intenção de uma comunidade de construir uma mesquita num terreno privado, que comunidade é realmente aquela e que específico ramo do islamismo professa: é islâmica e para aqueles políticos, que incluem representantes do PS, PSD e PCP (partido do presidente da Câmara de Benavente, Carlos Coutinho), chega.

Segundo o Público, Coutinho alega ter asseverado aos representantes da dita comunidade que ali se respeitam “todas as religiões”, mas que “não faz sentido ter aqui uma mesquita, quando não temos uma comunidade islâmica significativa no concelho”. E adverte: “Só há construção se houver licenciamento” — ou seja, a autarquia pode impedir a obra.

É uma curiosa ideia de respeito pelas religiões, esta que considera caber aos poderes políticos decidir, com base na quantificação do número de fiéis numa dada zona (como pode o autarca sequer saber quantos são?), que comunidades religiosas podem ou não comprar terrenos privados e neles construir. Um “respeito” que demonstra como estamos, a nível de discriminação institucional, perto do espírito da lei que obrigou a sinagoga de Lisboa a esconder-se atrás de muros: vocês podem existir, desde que existam o menos possível.

Mas, poder-se-á dizer, há uma Constituição e uma lei da liberdade religiosa; há até uma Comissão da Liberdade Religiosa. Existem inclusive tipos criminais no Código Penal que visam “proteger os sentimentos religiosos”, como o crime “ultraje por motivo de crença religiosa”, que pune quem “publicamente ofender outra pessoa ou dela escarnecer em razão da sua crença ou função religiosa, por forma adequada a perturbar a paz pública”. O mesmo código inclui o ódio religioso nos motivos que qualificam (ou seja, agravam) o homicídio e os outros crimes contra as pessoas.

Temos leis e instituições que cheguem para combater o ódio religioso, sim. Só falta querer combatê-lo. Diz o Daniel: “Chegámos aqui muito depressa”. Na verdade, nunca daqui tínhamos saído. 

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