Estado laico, mas pouco

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"A religião católica é a religião oficial de Portugal." A frase foi proferida no Parlamento por uma secretária de Estado do Governo PSD/PP, Mariana Cascais, em 2002. Perante o clamor de indignação de vários deputados, que lembraram à governante o princípio da separação entre Estado e confissões religiosas, consagrado na Constituição, esta assumiu o lapso queria referir o carácter dominante da crença católica no país, explicou.

A confusão assumida por Cascais, porém, não é rara e pode até ser justificável. Admite-o o jurista Menéres Pimentel, presidente da Comissão da Liberdade Religiosa, órgão independente de consulta do Governo e Parlamento, criado em 2004 "O mais grave é as pessoas estarem convencidas que a religião católica é oficial. É uma tradição que é necessário combater."

Uma tradição que se traduz em hábitos arreigados na sociedade portuguesa (a existência de símbolos religiosos cristãos nas escolas e edifícios públicos, a presença e destaque dado aos seus dignitários nas cerimónias oficiais, não raro incluindo bênção de equipamentos a inaugurar) mas também em disposições legais - da isenção de impostos de que a Igreja Católica (IC) gozou durante a vigência da Concordata de 1940 e só revogada, parcialmente, pela assinatura do novo tratado entre Portugal e o Vaticano, em 2004, ao seu monopólio na assistência religiosa nas Forças Armadas, hospitais e prisões, ainda em vigor (texto na pág. 4), passando pela sua não sujeição à lei de liberdade religiosa, por via da excepção concordatária.

Hábitos e leis que, de acordo com a maioria dos constitucionalistas e até com a opinião da generalidade dos representantes das forças políticas consultados pelo DN contradizem os princípios consignados na lei. E que suscitam, da parte dos representantes de religiões minoritárias, comentários mais ou menos azedos (página 5).

Acima da lei? A própria Constituição, elaborada em 1976 e não alterada no que à relação com as religiões respeita, é contida nesta matéria a não confessionalidade do Estado implícita no artigo 41.º, que trata da liberdade de religião e culto, só é estabelecida preto no branco 25 anos depois, na lei da liberdade religiosa ("O Estado não adopta qualquer religião.") Uma elipse comum às leis fundamentais da maioria dos países europeus, entre as quais só a da França consagra inequivocamente a laicidade.

Mas, como sublinha Jónatas Machado, constitucionalista da Universidade de Coimbra, se "a nossa Constituição não estabelece uma fórmula matemática para resolver a relação entre religiões e Estado", implica pela separação que "o Estado não pode ter uma religião, nem impô-la aos cidadãos, nem discri- minar em função disso. Nem a fé nem a descrença podem ser objecto de coacção". Reconhecendo a forte marca católica da cultura portuguesa - notória em apontadores tão banalizados como o dos feriados religiosos, a começar pelo domingo -, Machado considera no entanto que, "sob pena de inconstitucionalidade", matérias como o estatuto fiscal das confissões tem de ser rigorosamente igual. "E se vêm falar das expropriações dos bens da IC efectuadas durante a I República, então tem de se ver que as outras confissões também foram muito prejudicadas." A existência de capelanias católicas é também, em seu entender, incompatível com o princípio da separação ("A haver uma estrutura dessas, tem de ser plural.")

Outras questões suscitam reservas ao constitucionalista, como a garantia do sigilo da confissão, inscri-to na nova Concordata, quando outros sigilos profissionais, como o dos médicos, dos advogados ou dos jornalistas podem ser escrutinados pelos tribunais. "Isso coloca os padres acima da lei. E em nome de quê? De uma relação com a transcendência? Caberá ao Estado proteger incondicionalmente a dimensão religiosa de forma tão categórica, quando do outro lado pode estar algo de tão imponderável como a vida humana?"

A "questão religiosa". Nem todos os estudiosos da Constituição, porém, comungam da mesma visão. "Não se pode ler a lei só como o texto escrito", diz Jorge Miranda. "Há também o costume, que é relevante." Em assuntos como a existência de crucifixos nas escolas públicas ou o destaque conferido pelo protocolo de Estado a representantes da Igreja Católica, o professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa advoga "uma atitude aberta, que não escamoteie a realidade cultural".

Invocando o princípio da tolerância, inscrito na lei da liberdade religiosa, Miranda aconselha as minorias - de outras religiões, como as aconfessionais - a conviver com "esses símbolos". E congratula-se com "uma das grandes vitórias do regime português pós-25 de Abril, que conseguiu criar um modus vivendi entre a IC e o Estado que não tem comparação com o que houve durante os últimos 150 anos". Uma relação que vê pacificada, mas de equilíbrio delicado - "São questões de grande melindre. E há problemas muito mais graves, como o dos incêndios? Fazer surgir uma questão religiosa em Portugal não faz qualquer sentido."

A separação entre Estados e re-ligiões é afinal um fenómeno recente. E a "questão religiosa" marca a actualidade do desenho de uma "guerra santa" entre certos grupos islâmicos e o Ocidente aos conflitos que marcaram o final do século XX na zona dos Balcãs, passando pelo combate da IC pela referência ao legado do cristianismo no Tratado da Constituição Europeia e a discussão sobre a entrada da Turquia na UE, não esquecendo o debate que mobilizou a França a propósito da permissão ou não do uso do véu islâmico nas escolas públicas e as bata-lhas legais e declarações políti- cas inflamadas suscitadas pelo te-ma dos crucifixos nas escolas na Alemanha e Itália (incluindo um apelo do novo Papa para que não sejam retirados).

Melindre e reverência. Em Portugal não haverá uma questão religiosa - é, entre outras, a opinião do deputado do PS Eduardo Vera Jardim (ver entrevista), principal responsável político da lei da liberdade religiosa. Mas não há dúvida de que as relações entre Estado e religião (leia-se com a IC) suscitam uma tendência para o silenciamento. Disso se queixam os credos minoritários e os defensores da laicidade, como Luís Mateus, da associação República e Laicidade. As expressões "delicadeza" e "melindre" surgem amiúde na equação, e a possibilidade de inconstitucionalidade e ilegalidade de algumas disposições e práticas é considerada de somenos importância perante o receio de causar "perturbações".

Se Pedro Mota Soares, do CDS/PP, se reclama pela defesa "do lado tradicional da nossa história, das nossas raízes", vendo "como absolutamente normal que as cerimónias oficiais incluam o benzer de uma ponte, de um edifício", já que "mesmo no Estado há espaço para o divino e é preciso não confundir laicidade com ateísmo", os discursos à esquerda desta força política surgem eivados de um cuidado quase reverencial. É disso exemplo o do deputado do PSD Montalvão Machado "Mesmo que a lei não esteja a ser formalmente cumprida, isto tem um tempo?". Se assevera, por exemplo, "achar mal que haja crucifixos nas escolas", ressalva: "Não se pode dizer de repente que vamos alterar isto tudo. Há um hábito de séculos, isto é um processo evolutivo. Mesmo os defensores da pura laicidade e neutralidade, como eu, reconhecem que é muito melindroso." Uma ponderação em que é acompanhado por José Neto, do Comité Central do PCP: "Somos contra os crucifixos nas escolas, claro. Mas como será tratado o partido ou governo que diga 'saiam os crucifixos'? Seria crucificado!"

Complexo Afonso Costa? Não é que Neto não frise que "os princípios constitucionais continuam a ser violados", exemplificando com a lei de liberdade religiosa, contra a qual o seu partido votou por "excluir a IC". Mas questiona "Será que as pessoas se preocupam com isso?" Este é um tema "que caiu", admite. E conclui: "Há algum condicionamento dos decisores políticos, a impressão que fica é de um certo receio". Fernando Rosas, do BE, concorda e aponta o dedo: "Esse receio é mais notório nos partidos da esquerda tradicional. Demitiram-se de pensar este assunto. Têm medo que lhes chamem pedreiros-livres. É o complexo Afonso Costa." Referindo-se ao primeiro-ministro que em 1911 estabeleceu a lei de separação entre Estado e IC, expropriando desta a quase totalidade dos bens, o historiador considera que, por via desse complexo, "a democracia portuguesa nasceu mal no que respeita à relação do Estado com a Igreja." Uma oportunidade perdida, comenta. "Mexeu-se na Concordata em 1975 para possibilitar o divórcio dos casados pela IC, mas não houve coragem de ir além: reiterou-se a validade do resto do tratado."

Foi preciso esperar três décadas até ver revogado um acordo que conferia aos padres um estatuto equiparado ao de funcionários públicos e os isentava do pagamento de impostos. 2005 é o primeiro ano em que verão o seu rendimento de trabalho colectado, quase um século depois da lei de separação de Afonso Costa, a bête noire da Igreja Católica portuguesa. O homem que disse "A Igreja em Portugal recua até onde a empurrarem e avança até onde a deixarem."

"Só há duas pessoas que nas cerimónias em que há misturas de órgãos de soberania têm lugar de destaque o Presidente da República e o cardeal-patriarca. Reserva-se um cadeirão para cada um: é a tradição do protocolo português." É assim que o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), António Carneiro Jacinto, responde às questões colocadas pelo DN sobre o lugar reservado ao cardeal-patriarca e demais representantes da Igreja Católica (IC) pelo protocolo de Estado. E justifica: "A IC tem sempre uma posição de destaque, que se baseia num critério que vem desde sempre, e que não foi alterado depois do 25 de Abril."

No 31.º aniversário da referida data, aliás, o cardeal assistiu à cerimónia parlamentar comemorativa no camarote de honra, junto dos ex-presidentes, situação que o coloca, reconhece Jacinto, "no mais alto lugar da hierarquia". Este critério não estará, de acordo com o serviço de protocolo do MNE, consignado em qualquer documento, já que a "lista oficial de precedências" existen-te foi considerada desactualizada e substituída por uma "lista oficiosa". E não deve, diz Jacinto, ser interpretado como uma equiparação entre a dignidade do Presidente e a do cardeal, mesmo se o lugar de destaque que lhes é atribuído tem características paralelas.

Também o preceito da lei de liberdade de religiosa (Lei n.º 16/2001) que especifica a necessidade de se respeitar "o princípio da não confessionalidade nos actos oficiais e no protocolo de Estado" não parece ao porta-voz impossibilitar a "tradição protocolar" "Estamos num país, que independentemente dessa lei, é 80% católico. As outras confissões compreendem que haja um lugar de destaque para a IC".

Um entendimento contestado pelo principal proponente da lei em vigor, o deputado do PS Eduardo Vera Jardim (ver entrevista) "Essa situação fere o espírito da lei e os preceitos constitucionais."

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