Há quem diga que as tragédias se repetem como farsa. Em Portugal, pelos vistos, repetem-se como rotina administrativa. Que o digam os dois cidadãos marroquinos em Olhão, que andaram a comer sem pagar num supermercado, vítimas de alegado sequestro e espancamento por dois agentes da PSP, um tendo vindo a morrer na sequência da agressão, o outro sobrevivendo para contar. Acusação de homicídio pelo Ministério Público, digna de manchete. E, no entanto, ficou-se por aí. Nada de sobressalto nacional, ninguém a usar ruas para exigir explicações, nem políticos a debater prazos para extinção da PSP – como diria alguém, “sigam, não há nada para ver”.Como se descreveu na imprensa, só para estarmos todos a par do que estamos a falar, seguindo a acusação do Ministério Público aos dois polícias: “A detenção obrigaria a um relatório escrito na esquadra, mas em vez disso terão feito um desvio e levado os dois imigrantes para uma estrada isolada a cinco quilómetros. O Ministério Público diz que os agentes desferiram pancadas na cabeça e na face de uma das vítimas, Aissa, pelo menos uma das vezes com um objeto. O homem de 26 anos não terá conseguido defender-se, estava algemado com as mãos atrás das costas. A gravidade das lesões deixou-o nos cuidados intensivos. Ao fim de 19 dias morreu no hospital de Faro. Tinha fraturas no crânio, nariz, maxilares e coluna” (Diogo Torres e Patrícia Reis, SIC Notícias, 22 de agosto).Recordamos ainda Ihor Omheniuk, ucraniano assassinado por inspetores do SEF à chegada a Portugal, em pleno aeroporto de Lisboa. A indignação foi quase geral: inquéritos, demissões, reforma acelerada da instituição, lágrimas parlamentares e apelos ao dever moral europeu para com estrangeiros vulneráveis. Foi um escândalo – daqueles com direito a conferências de imprensa e à criação de novos mecanismos de fiscalização. Mas como explicar este silêncio? Terá sido do local? Olhão não é Lisboa, onde estão os jornalistas, os políticos e os influencers. Um país anestesiado, rendido à previsibilidade do verão, incapaz de digerir mais um caso de violência cuja explicação é tão simples quanto alarmante: brutalidade policial, racismo, desigualdade, sentimento de impunidade. Talvez apenas não se queira falar, não vá o tema provocar azia ou, pior, consequências. Ou será de estar outro Governo em funções, um que lançou pelo país cartazes a dizer que regulou a imigração em 11 meses? Em Portugal, a morte violenta de mais um cidadão algemado às mãos da polícia inspira indiferença polida e o apelo à “confiança nas instituições”. E o mesmo Estado, que se apressou a pagar uma indemnização à viúva e filhos do cidadão ucraniano morto pelo SEF, aqui nada disse ainda aos familiares de Aissa.O que se passa com estas nossas polícias, que espancam e matam homens algemados, a coberto seguramente de um alto sentido pedagógico que sentem na sua intervenção? Que tara é essa? Só faltam dizerem que estão a fazer um trabalho divino e que não se podem dar ao luxo de falar de direitos e modernices dessas. Ou pelo menos um trabalho que é preciso fazer, mas que os esquerdalhos que abandalharam o País não deixam. O polícia acusado de homicídio “divulgou uma série de vídeos xenófobos na internet, sobretudo ligados ao Chega (...). Partilha vídeos que contestam a presença de imigrantes em Portugal. Divulga informações falsas, como a de que o Estado lhes oferece casas, telemóvel e dinheiro. Difunde ideias xenófobas. Não seria notícia se o polícia não estivesse agora acusado do homicídio de um imigrante marroquino”. Aos membros das forças policiais está vedada a expressão de posições políticas ou partidárias, já agora.Nem sequer os ativistas mais politicamente corretos se aproximaram desta morte. Talvez se aguarde a próxima tragédia para se redescobrirem as palavras certas. Até lá, o silêncio continuará, rigorosamente, ensurdecedor. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa