O rosto da lei e o uso político da ‘burca’

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O recente Projeto-Lei que proíbe a ocultação do rosto em espaços públicos tem sido quase exclusivamente debatido sob o prisma da burca e do niqab. Essa canalização do debate, embora compreensível, é um ato propagandístico que obscurece o verdadeiro alcance da medida.

A proibição é muito mais vasta, tocando em questões de segurança pública que ultrapassam largamente os dilemas culturais. A burca é o ‘casus bell’ ideológico, mas o Projeto-Lei visa a segurança de todos.

Apesar de ter sido apresentado por uma força política de direita populista, o mérito intrínseco do diploma justificou o seu acolhimento e aprovação na generalidade pelos partidos do centro à direita. Tal transversalidade sublinha a validade da iniciativa, embora se note que a maioria dos partidos à esquerda votou contra, mais motivada pela demarcação política face ao proponente do que pela substância securitária do Projeto-Lei. A proibição da burca e do niqab não é um ato de intolerância, mas uma afirmação dos valores que sustentam a nossa civilização: a dignidade da pessoa, a igualdade entre os sexos e a liberdade individual. Estes trajes, longe de serem símbolos de fé, representam a submissão da mulher e a anulação da sua identidade.

Segundo autoridades islâmicas moderadas, como o imã da Mesquita Central de Lisboa, o uso da burca e do niqab não é uma obrigação religiosa, mas uma construção cultural e política, frequentemente instrumentalizada para controlar e silenciar as mulheres.

Neste contexto, a proibição destes trajes deve ser entendida como uma medida de combate à violência de género. Tal como rejeitamos a mutilação genital feminina ou a violência sexual, devemos rejeitar formas de vestuário que, sob o pretexto da tradição, perpetuam a opressão. A liberdade de escolha não pode ser invocada quando essa escolha é condicionada por coação familiar ou religiosa.

A segurança pública constitui a base efetiva deste diploma. A ocultação total do rosto compromete a identificação de indivíduos em espaços públicos, explorável para fins ilícitos.

Portugal, com este passo, alinha-se com quase 40 países no mundo - incluindo nações europeias como a França, a Bélgica e estados de maioria muçulmana como Marrocos e a Tunísia -, que reconheceram o rosto visível como um imperativo de segurança. O Projeto-Lei atua como ferramenta crucial de prevenção do crime, indo além do debate cultural. É uma resposta legal à entrada em estabelecimentos com o rosto oculto (assaltos com capacetes), e uma necessidade premente no combate à violência em manifestações, onde indivíduos com passa-montanhas (balaclava) procuram anular a sua identificação. A lei visa garantir a ordem e a responsabilização dos perpetradores.

Vivemos numa sociedade laica, mas enraizada numa matriz ética que valoriza a inviolabilidade da pessoa humana. É com base nestes valores que rejeitamos práticas que atentam contra a liberdade e a igualdade, mesmo quando justificadas por argumentos religiosos.

Aceitar a burca em nome do relativismo cultural é aceitar a perpetuação da desigualdade e da submissão. A verdadeira tolerância não consiste em fechar os olhos à opressão, mas em ter a coragem de dizer não a tudo o que nega a dignidade da pessoa. A proibição da ocultação do rosto é, por isso, um passo necessário para afirmar os valores que nos unem enquanto sociedade livre e justa, e para reforçar a segurança de todos os cidadãos perante a criminalidade.

Analista de Estratégia, Segurança e Defesa

Diário de Notícias
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