O que é um espectador de cinema?

Como falar de cinema sem ter em conta os valores dominantes no espaço televisivo? Eis uma questão adiada.
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Recentemente, as notícias sobre uma nova vaga de encerramento de salas de cinema em diversos pontos do país (deverão ser 46 até final do ano) suscitaram múltiplas reações de desalento e renovado pessimismo. Não sou estranho às emoções e a algumas das ideias expressas em tais reações, mas não posso deixar de voltar a manifestar alguma perplexidade. Que é como quem diz: será possível inventariar os dramas do cinema no território português sem que, nem que seja por um breve momento, se pense ou, pelo menos, sugira que, para entendermos os problemas interiores do mundo do cinema, talvez seja necessário falar um pouco de televisão?

Bem sei que o terreno é o movediço. E não esqueço a angústia de uma figura emblemática do espaço televisivo que, há uns anos, saturado por observações críticas que considerava ofensivas do seu trabalho, desabafava com comovente candura: “Mas então a culpa é sempre da televisão?” Pela milésima vez, talvez seja oportuno repetir que não se trata de fazer moralismo de pacotilha e distribuir culpas - se isso é especialidade de algumas formas correntes de fazer televisão, a começar pelas análises futebolísticas, convém não ficarmos por aí e exigirmos um pouco mais da inteligência que partilhamos.

Alguns espectadores de cinema em 'Pedro, o Louco' (1965), de Jean-Luc Godard-
Alguns espectadores de cinema em 'Pedro, o Louco' (1965), de Jean-Luc Godard-

Para nos ficarmos pela questão mais geral, convém relembrar que o problema não é, nunca foi, meramente português: para usarmos uma palavra que está na moda, a sua complexidade é mesmo global. Há uma conjugação de fatores nada lineares - da proliferação de muitos novos meios de difusão de “conteúdos” até ao aparecimento de linguagens que, com maior ou menor imaginação, são também audiovisuais - a contribuir de forma sistemática (a meu ver, trágica) para a decomposição dos padrões clássicos de ver cinema e ser espetador de cinema.

Regressando ao interior do espaço português, seria interessante saber se é possível enfrentar os problemas atuais do cinema - dos recursos de produção até às estruturas de difusão - sem ter em conta que (outros) tipos de espetadores foram surgindo. Mais concretamente: alguém de boa fé considera que quase meio século de audiovisual dominado pela formatação industrial, narrativa e emocional das telenovelas (e pela sua gigantesca ocupação do território cultural) poderia contribuir para a proliferação de espetadores de... cinema?

Qualquer resposta a tal interrogação, seja ela “positiva” ou “negativa”, não pode ignorar, repito, a globalidade em que tudo isto se espraia. Até porque as condições concretas da vida económica e simbólica do cinema fazem com que, para o melhor ou para o pior, haja já uma geração (ou duas) que descobriu os filmes fora das salas de... cinema.

Há ainda outra maneira de encarar tudo isto. É a maneira mais difícil, a que desencadeia mais resistências no interior do sistema televisivo, porque é, justamente, a que encara de frente as respetivas opções dominantes. Assim, quando se pergunta se a televisão é, ou pode ser, de alguma maneira educativa, importa recusar a sacralização abstrata que, implicitamente, se cola à palavra “educação”. E relembrar algo que Roberto Rossellini nos ensinou a ter em conta há mais de meio século: tudo, mas mesmo tudo, que acontece em televisão produz algum efeito de perceção, interpretação e valorização do mundo à nossa volta.

Seja por comovente inocência, seja por militante cinismo, alguns perguntarão: tudo, incluindo os programas de “entretenimento”? A resposta será: tudo, sobretudo os programas a que se cola esse rótulo de “entretenimento” - não há nada mais visceralmente cultural, isto é, que mexe com todos os valores do tecido social.

Jornalista

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