O que dizem sobre nós os WhatsApp dos políticos?

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Comecei a aperceber-me disto há uns meses. Os políticos estão a ativar a opção de mensagens temporárias no WhatsApp. Enquanto percorro a lista de conversas no telefone, percebo que são cada vez mais as minhas fontes na política que optam por fazer desaparecer o que escreveram. Há prazos de validade diferentes: dos que querem que tudo fique apagado 24 horas depois de ter sido escrito, aos que deixam as mensagens durar sete dias. Mas a tendência está lá. Palavras leva-as o vento e, neste caso, a aplicação de mensagens que é cada vez mais uma ferramenta de trabalho.

A minha primeira reação foi uma espécie de sorriso cínico. Lembrei-me das vezes em que um WhatsApp se tornou num embaraço político e pensei que talvez fosse avisado apagar rastos. Depois, comecei a aperceber-me dos problemas que isto me causava. Quando pensava em recuperar uma conversa com uma fonte para me recordar do que tinha sido dito (ou, neste caso, escrito), as palavras tinham desaparecido.

Mas será que esta opção de fazer desaparecer o que se escreveu revela algo mais? Antes que se levantem os dedos acusatórios apontados à proverbial (e muitas vezes caricatural) forma como os políticos se esquecem do que dizem, viremos para nós a lente. Como é que os novos dispositivos estão a influenciar-nos os gestos e o pensamento?

Durante muitos anos, trabalhei sem WhatsApp. Telefonava aos políticos, tirava notas ou gravava e, algumas vezes, não ficava sequer com um registo que não o da minha memória. Até que me habituei a esta prótese de memória digital, que agora me acompanha para todo o lado. Tenho na palma da mão o meu local de trabalho, o arquivo do que faço, a biblioteca onde satisfaço as dúvidas, a hemeroteca de apoio, mas também o meu álbum de família, as trocas com os amigos, as confidências. Esta extensão de mim é útil, mas é também, cada vez mais, um fator de perturbação.

A forma como usamos a tecnologia fragmenta-nos a memória, deixa-nos isolados em bolhas de pensamento igual, dilui as fronteiras entre o pessoal e o privado, o formal e o informal. A tecnologia não é neutra. Ela está a moldar-nos. E é talvez aí que reside um dos maiores desafios que a democracia tem pela frente. Como é que podemos manter sob controlo democrático dispositivos que estão na esfera privada e em relação aos quais a legislação parece chegar sempre coxa e atrasada, sem conseguir acompanhar o ritmo da mudança?

A regulação será, sem dúvida, uma das vias a percorrer. Mas é preciso pensarmos à frente e questionarmo-nos sobre se será suficiente. Enquanto escrevo este texto, há programas de Inteligência Artificial a serem desenhados com modelos éticos que nenhum poder democrático controla, há algoritmos que ninguém conhece a estabelecer prioridades e alcance na distribuição de informação, a tomar decisões em relações de trabalho e em atos clínicos.

As democracias construíram-se com base na ideia de uma partilha de informação que permitiria uma decisão partilhada entre todos. Obviamente, o sistema nunca foi perfeito, houve sempre distorções. Mas nunca, como hoje, houve ferramentas tão poderosas operadas de forma tão oculta. E nunca nenhum media de informação se infiltrou tanto nas nossas vidas e nas nossas cabeças. Dito isto, parece estranho que o debate político em Portugal ainda não tenha entrado a sério no tema. Estamos à espera do quê para entender a urgência deste debate sobre a tecnologia?

Jornalista

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