Na conferência sobre o Orçamento do Estado para 2026, organizada pela RFF Advogados, que decorreu esta segunda-feira no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, Manuela Ferreira Leite lembrou que “era possível reduzir o nível de endividamento e o défice sem destruir os sectores de apoio social altamente importantes e decisivos como é o caso da Educação e da Saúde”. A antiga dirigente do PSD, que ganhou a imagem pública de austeridade quando foi ministra da Educação (1993-1995) e passou a ser comparada à ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, recebendo o seu epíteto "Dama de Ferro”, explicou que “se estivesse numa situação de endividamento e tivesse de escolher entre pagar a dívida e alimentar os meus filhos, colocando em causa o seu bem-estar e desenvolvimento físico e intelectual, não teria dúvidas sobre o que teria de fazer”, acrescentando que haveria outras formas de reduzir o défice orçamental e a dívida pública durante a última década. “Destruir é fácil. Reconstruir é mais difícil e leva mais tempo”, advertiu. As estatísticas mais recentes confirmam o alcance destas palavras.Em ambos os setores, Educação e Saúde, a consolidação orçamental dos últimos anos deixou marcas visíveis. Portugal conseguiu equilibrar as contas, mas com um preço elevado para a capacidade de resposta e qualidade dos serviços.No relatório da Entidade Reguladora da Saúde, do qual nos informa nesta edição a Ana Mafalda Inácio, relativo ao primeiro semestre de 2025 revela que quase um milhão de utentes estava em lista de espera para uma primeira consulta hospitalar, mais 25,6% do que no mesmo período do ano anterior. Mais de metade (56,6%) desses utentes aguardam há mais tempo do que o permitido por lei. Nas especialidades mais sensíveis, como oncologia e cardiologia, a situação é ainda mais grave: 71% dos doentes oncológicos e 83,7% dos cardíacos estão fora dos tempos máximos regulamentares.Os hospitais públicos aumentaram a atividade — realizaram 681 mil primeiras consultas e 305 mil cirurgias programadas nos primeiros seis meses do ano —, mas o crescimento da procura é superior à capacidade de resposta. Como explica o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, Xavier Barreto, “a procura de cuidados é cada vez maior e o SNS não está a ser capaz de acompanhar esta procura”. O mesmo responsável recorda que apenas 25% das consultas são primeiras consultas e que muitas situações poderiam ser acompanhadas por outros profissionais de saúde ou através de tecnologia, libertando tempo médico para o diagnóstico inicial.Os dados da ERS mostram também que a atividade nos hospitais privados e sociais com protocolos com o SNS representa apenas uma pequena fração da resposta global, e que mesmo com a criação do novo Sistema Nacional de Acesso a Consulta e Cirurgia (SINACC), que deverá simplificar a gestão das listas, o problema estrutural persiste: há mais doentes, mais longevidade e mais doenças crónicas, mas o investimento e a reorganização do sistema avançam lentamente.Na educação, o recentemente divulgado relatório Education at a Glance 2025 da OCDE mostra que 46% dos portugueses entre os 25 e os 64 anos têm dificuldade em compreender textos que vão além do básico. São adultos capazes de ler instruções simples, mas com dificuldade em interpretar textos mais extensos ou analisar informação complexa. Apenas 3% dos inquiridos atingem os níveis mais elevados de literacia, contra 12% na média da OCDE. Portugal está, assim, no penúltimo lugar entre 30 países avaliados, à frente apenas do Chile.Estes números refletem o efeito prolongado de subinvestimento em escolas, formação e qualificação. Desde o período da troika, o país tem mantido o esforço financeiro em educação praticamente estável, em torno de 5% do PIB, sem recuperar o atraso relativo no gasto por aluno nem na renovação do corpo docente. Os últimos dados disponíveis indicam que mais de metade dos professores do ensino secundário têm 50 anos ou mais. É evidente a falta de rejuvenescimento nas escolas e um sistema que depende cada vez mais de profissionais próximos da reforma e que tem dificuldade em atrair novos quadros.O desinvestimento prolongado em educação não se reflete apenas nas escolas ou nos salários. Manifesta-se nas competências da população, na sua capacidade de inovação, na produtividade e até na coesão social. Uma sociedade com baixos níveis de literacia é mais vulnerável à desinformação, tem mais dificuldade em aceder a oportunidades e progride mais devagar.São dados objetivos que ilustram o impacto de uma política prolongada de contenção no investimento público e ajudam a enquadrar as palavras da antiga ministra. Um país que não investe nos seus professores, nos seus alunos e nas suas escolas está, na prática, a desistir de crescer. Somos um país que lê menos, entende menos e, por isso, participa menos. E é isso que deve preocupar-nos mais.No caso da saúde, estamos a falar de vidas. O SNS é um pilar fundamental para a coesão social. Não investir nos profissionais de saúde, nas infraestruturas e na capacidade de resposta é, na prática, desistir de proteger quem mais precisa e aceitar que a desigualdade se torne parte do sistema. É esquecer que um país vale tanto mais quanto mais cuidar dos seus.