Um dos espinhos da coroa da maioria absoluta era a possibilidade de esta se tornar uma prisão para António Costa. O facto de o primeiro-ministro ter (1) transformado o novo governo numa fábrica de alternativas a Pedro Nuno Santos, (2) transferido os Assuntos Europeus para São Bento e (3) mantido o seu futuro em aberto no último congresso do PS forçou o Presidente da República a apressar uma advertência que, mais cedo ou mais tarde, seria feita..Esta semana, Marcelo Rebelo de Sousa inaugurou os seus serviços de diretor prisional e enclausurou o primeiro-ministro nesse cárcere. Primeiro no parlamento, depois em Belém, o Presidente deixou claro ao Executivo empossado: "Os portugueses deram a maioria absoluta a um partido, mas também a um homem"; "o primeiro-ministro é refém do povo". Dito de outro modo: caso a tentação europeia surgisse a Costa em 2024, eleições antecipadas surgiriam ao país no mesmo ano..A linha vermelha foi traçada e cedo suscitou retorno: o gabinete do primeiro-ministro soltou à imprensa que as aspirações internacionais de Costa estão adiadas e que a legislatura será cumprida. Marcelo, depois de um enfadonho resumo da guerra da Ucrânia, agrilhoou Costa ao seu próprio sucesso. E o absolutismo do Partido Socialista foi inaugurado, ironicamente, perante um Marcelo absoluto. O Presidente, sob a sentença da estabilidade, desenhou uma prisão para o primeiro-ministro. Chamou-lhe governo de Portugal..Contemplando os demais reclusos da República, facilmente se depreende que a maioria absoluta - tirando a sabotagem das ambições de António Costa -‒ pouco ou nada mudará na vida dos portugueses. O elenco de governantes, caso o governo fosse minoritário, não seria muito diferente. As linhas do seu programa e o discurso de tomada posse do primeiro-ministro poderiam ser os mesmos de 2015 ou 2019. Costa começou por citar, precisamente, a frase que proferira na segunda vez que assumiu a função. É um governo de continuidade, quando não de início de adeus - adiado ou não..O verdadeiramente curioso na história política do costismo é que nunca se escondeu, nem tão-pouco se alterou. Com BE e PCP; sem um ou o outro. Com Passos deposto e na oposição; com Rio morto ou de mão estendida. A ação do recém-reeleito primeiro-ministro é de uma coerência indesmentível. Primeiro, polariza. Depois, imobiliza. Os períodos eleitorais são, inevitavelmente, tempestades de vento soprado (pela direita, pelas crises e que mais) e o país uma frágil mas orgulhosa casca de noz (habilmente conduzida por Costa)..Em 2015, o oceano dividia-se entre Passos (neoliberal, austeritário, ao serviço de Berlim) e Costa (sorridente, humano e adepto de ruturas na Europa). Este ano, não foi diferente. O mundo foi novamente separado entre Rio (conivente com o Chega, pronto a corromper a Constituição) e Costa (ainda sorridente, ainda humano e agora adepto das regras da Europa)..Numa e noutra, o Estado Social, a democracia e quiçá o mundo estiveram em risco e teriam certamente acabado caso o PS fosse derrotado pelas forças da reação. Entre uma e outra, porém, nada mudou. Costa é, por excelência, um polarizador de continuidade. Polariza entre os prejudicados pela ausência de reformas para prosseguir sem reformar coisa alguma. Está tudo na mesma e tudo na mesma ficará..O primeiro-ministro, que sabe que o exercício de poder é insuficiente para construir um legado, já fala em "estabilidade sem inércia". O mais provável, olhando à volta, é vivermos uma instabilidade com inércia. E isso explica bem por que é que um quer ir embora e outro nem ouvir falar nisso..Colunista