O plebiscito quotidiano do rei
O rei de Espanha regressou esta semana às zonas afectadas pelas inundações em Valência. O contraste com a visita anterior foi absoluto. Entre aplausos e vivas ao monarca, Felipe VI abordou e foi abordado por residentes com enorme respeito e estima, num registo de proximidade cúmplice, embora cuidando o pendor institucional que evita a frivolidade populista e vácua dos afectos.
Na visita anterior, no início do mês, a comitiva composta pelos monarcas, pelo presidente de Governo Pedro Sánchez e pelo presidente do Governo valenciano Carlos Mazón foi recebida com lama, insultos e agressões. A calma só chegou quando Sánchez abandonou o local e Felipe VI encarou a adversidade, dando o rosto à ira de um povo abandonado pelo Estado após sofrer o pior desastre climático das últimas cinco décadas.
O rei submeteu-se a evidentes riscos físicos e políticos para mostrar que o Estado existe e não esquece quem dele precisa. Foi um gesto de franqueza e valentia institucional, já que carece do poder executivo necessário para suprir as omissões gravosas do Governo Nacional, de esquerda, e da Generalitat valenciana, de direita.
O Governo e o PSOE atribuíram os tumultos a uma urdidura fascista, explicação pouco crível para quem visse as imagens. Poucos se surpreenderam quando, dias mais tarde, as autoridades policiais a desmentiram. A ausência de surpresa deve-se também ao hábito: a extrema-direita é um espantalho sacudido pelo Governo sempre que se depara com adversidades.
Foi assim quando apareceram suspeitas que implicam a mulher de Sánchez em alegada corrupção e tráfico de influências. Mas o presumível embuste fascista tem sido corroborado por factos indesmentíveis que, na mais benigna das hipóteses, destapam seríssimas falhas éticas e políticas. Não é o único caso - nem porventura o mais grave - a manchar o Executivo.
Os reiterados desmandos do Governo e da Oposição, bem como as trincheiras que deles emergem, fazem com que a primeira década do reinado de Felipe VI brilhe pela exemplaridade. A herança contaminada pelos escândalos de Juan Carlos foi superada com transparência escrupulosa, zelo institucional e proximidade à cidadania. O rei cortou com a herança patrimonial do pai para salvar o legado institucional do país. Numa arena política de emoções desatadas, que apenas servem agendas partidárias pedestres, a Coroa oferece dignidade e estabilidade.
O constitucionalista Josu de Miguel defende que é a acção permanente do rei, no respeito pela democracia, que determina a viabilidade da chefia de Estado não-republicana. No fundo, tem de ganhar o plebiscito quotidiano do qual falou o jornalista Justino Sinova em 1998, por ocasião do 30.º aniversário do então príncipe Felipe. Numa monarquia parlamentar - sobretudo na espanhola, a mais republicana de todas - exige-se ao monarca que todos os dias mereça o cargo que exerce.
Em Valência, Felipe VI venceu vários plebiscitos quotidianos por maioria absoluta. E sintetizou o propósito do seu reinado: guardar as instituições democráticas e a estabilidade do Estado, ameaçadas pelos sucessivos fracassos dos partidos, ostensivos desde a crise de 2008-2011. Em Espanha, o maior e melhor defensor da democracia é um cargo público não-eleito.