O pessimismo sobre a ONU é um erro

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Seguindo a tradição, o Brasil foi o primeiro Estado a tomar a palavra na abertura do segmento de alto nível da Assembleia Geral das Nações Unidas, esta semana em Nova Iorque, e o discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi um dos mais marcantes. Falou 18 minutos, ou seja, pouco mais dos 15 que são a regra, que quase ninguém respeita. Vale a pena ver o vídeo que registou a sua intervenção.

Se se tivesse de limitar as suas palavras a um par de linhas, diria que foi uma voz firme em representação do Sul Global, dos países que estão a definir um novo tabuleiro de poder na ordem internacional e que procuram ser mais ouvidos nas instituições globais. Lula defendeu o papel da ONU, a soberania dos Estados num quadro que reforce a cooperação multilateral e que condene as intervenções arbitrárias dos mais fortes. Sublinhou três das questões fundamentais da agenda mundial: a regulação das plataformas digitais, de modo que se possa proteger os mais vulneráveis e evitar a manipulação, sem restringir a liberdade de opinião; as alterações climáticas; e a luta contra a pobreza, a fome em particular. Tomou uma posição correta em relação à tragédia de Gaza. A passagem sobre a Ucrânia deve ser considerada uma pecha grave na sua comunicação. Lula foi vago e deferente aos ouvidos de Moscovo, não utilizou as palavras invasão e agressão nem se referiu ao conflito como deveria: uma violação indiscutível pela Rússia da Carta da ONU. Nesta matéria, Lula mostrou que dança ao som da música de Putin.

O segundo Chefe de Estado a intervir foi o Presidente dos EUA. Havia uma enorme expetativa sobre o que iria dizer, incluindo sobre o futuro das Nações Unidas. Discorreu durante quase uma hora sobre os mais diversos temas, mas sempre com a sua pessoa no centro do monólogo. Resumindo, dir-se-ia que Trump falou sobre Trump. Foi um mau discurso, cheio de afirmações falsas e de posições políticas erradas, de épocas passadas e há muito derrotadas pela evidência histórica e científica. Enquanto Lula e outros líderes procuraram quase sempre olhar para o futuro, reforçar a cooperação para a solução conjunta dos grandes problemas globais e sublinhar a necessidade da reforma da ONU, Trump pôs em causa muitas das questões fundamentais para a sobrevivência do nosso Planeta. Atacou diretamente a política de muitos Estados, incluindo de velhos aliados dos EUA, e a ausência de iniciativa do Secretário-Geral em matéria de resolução de conflitos. Tratou a comunidade das nações com paternalismo e sobranceria, e a ONU como uma nulidade.

Na realidade, Trump trouxe apenas três mensagens: que melhor e mais sábio líder mundial não há nem pode haver; que deve ser visto como um construtor da paz, a merecer todas as honras, do Nobel para cima; e que é o soberano do país mais forte do mundo, o que lhe daria o direito natural de ditar a agenda internacional.

Mas a impressão que saiu da sala da Assembleia Geral parece ser outra: Trump representa um aviltamento da política americana, é um embaraço para as democracias ocidentais e mais, um perigo para a estabilidade mundial, ao lado de alguns outros líderes que tal como ele vivem no passado, no culto da personalidade ou sobrevivem graças a regimes ditatoriais.

Emmanuel Macron e vários outros oradores sublinharam a importância da cooperação, exercida sobretudo através de uma ONU reforçada e capaz de refletir a presente paisagem política internacional. Essa reforma das Nações Unidas deve ter como primeiro ato a reestruturação do Conselho de Segurança e a modernização das suas regras de funcionamento, nomeadamente no que respeita ao uso do veto. Macron mencionou uma lista de países que segundo a sua opinião deveriam ser acrescentados aos membros permanentes do Conselho – Alemanha, Brasil, Índia, Japão e dois Estados Africanos. Infelizmente é impensável que tudo isso possa acontecer nos anos mais próximos.

O Conselho de Segurança transformou-se numa arena de confrontação entre os EUA, a Rússia e a China. É sobretudo para isso que serve desde meados da década passada. Nenhuma destas potências quer aceitar uma composição nova, que possa minar os seus interesses estratégicos e as suas alianças geopolíticas. É no atual Conselho de Segurança que está a principal fraqueza do sistema político da ONU. E assim iremos continuar. E a assistir, ao mesmo tempo, à divisão da cena internacional em vários palcos, uns mais eficazes do que outros.

Isto não significa, porém, que as principais funções da ONU – excluo aqui as agências especializadas, que têm as suas regras de funcionamento, de governação e de financiamento – estejam condenadas a desaparecer. O mundo continua a ter problemas que justificam a necessidade de uma cooperação global, desde a questão da pobreza às relacionadas com os direitos humanos, a proteção da natureza, os desafios climáticos e humanitários, a resposta ao crescimento acelerado da Inteligência Artificial, do crime organizado ou das guerras civis. Por isso, é essencial insistir na capacidade de iniciativa dos dirigentes da ONU, a começar pelo Secretário-Geral, e no pagamento atempado das quotas devidas por cada Estado. Ou seja, não há razões para o pessimismo, nem motivos para cruzar os braços.

Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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