O efeito imediato de uma guerra como a que Vladimir Putin lançou na Ucrânia é o da tragédia humana que ela provoca: mortos, desalojados, refugiados, devastação, fome. A solidariedade ativa com o povo ucraniano, é, por isso, neste momento, uma exigência humanitária, mesmo que circunstancialmente favoreça outros inimigos da humanidade que agridem outros povos, esquecidos, em outros pontos do mundo..O segundo efeito de uma guerra como a que decorre na Ucrânia é a libertação de vários demónios que saem, desembaraçados e enfurecidos, do palco das operações militares para passarem a habitar o teatro do quotidiano civil. A palavra que sintetiza o efeito dessa libertação é esta: ódio..Esse demónio de guerra chamado ódio chegou a Portugal..Quando vejo uma fotografia tirada à entrada de um restaurante português, localizado a 4100 quilómetros de Kiev, a mostrar que o dono do estabelecimento inscreveu na ardósia, onde habitualmente coloca a lista de pratos do dia, a frase "Russos fora daqui!", vejo o demónio do ódio em ação em Portugal..Quando vejo um dirigente de uma associação de imigrantes do Leste no nosso país a relatar que muitos russos que aqui vivem - mesmo aqueles que se manifestam contra a guerra e se mostram solidários com a Ucrânia - estão a ser insultados e mal tratados, vejo o demónio do ódio em ação..Quando vejo uma significativa manifestação de solidariedade para com o povo ucraniano ser "infetada" pela presença de uma bandeira rubro-negra que infelizmente foi abusivamente adotada em 2013 como símbolo do grupo de extrema-direita Pravy Sektor, ultranacionalista e com inspiração nazi, vejo o demónio do ódio em ação..Quando vejo inscrita numa parede de um centro de trabalho do PCP o injustificável graffiti "Russos = Comunas" e "Têm sangue ucraniano na foice", vejo o demónio do ódio em ação..Quando vejo nas redes sociais o militante de extrema-direita Mário Machado a pedir aos seus camaradas para não começarem já uma operação de "invasão e destruição das sedes do Partido Genocida Comunista em Portugal", porque estão a ser vigiados pelas autoridades, vejo o demónio do ódio em ação..Quando vejo na televisão uma confusa torrente de comentários a misturar a Rússia atual com a antiga União Soviética, morta há 31 anos, numa aparente intenção de aproveitar esta guerra entre fações do capitalismo para acicatar nova guerra aos comunistas, vejo o demónio do ódio em ação..Quando oiço, dito por comentadores e políticos e quando vejo escrito pela mão de jornalistas, meus camaradas de profissão, a frase, preto no branco, "PCP apoia Putin" - o que é uma objetiva mentira e não se pode concluir em qualquer das formulações dos três comunicados emitidos por esse partido acerca deste conflito - vejo o demónio do ódio em ação..(É verdade que o foco das críticas iniciais do PCP, antes de a invasão russa se concretizar, foram apontadas à escalada da confrontação com a Rússia feita por Estados Unidos, por NATO e pela Ucrânia, mas isso não é equivalente a dar apoio a Putin. É verdade que, na minha opinião, a medida da crítica que foi feita no segundo comunicado à invasão russa poderia ter sido bem mais intensa, um erro estúpido, mas está lá feita e, por isso, ninguém pode dizer com honestidade intelectual que não ficou explicito que o PCP não apoia Putin. É verdade que um terceiro comunicado, o de ontem, usa a palavra "condena" num parágrafo que inclui os poderes russo, norte-americano, da União Europeia e da NATO, mas isso não é, mais uma vez, apoiar Putin, é mostrar que há mais culpas neste cartório de horrores, como é neste momento necessário fazer porque pouca gente tem coragem para o dizer, apesar de ser uma verdade factual)..Quando vejo frases a favor da paz escritas pelo PCP serem recebidas nos media e nas redes sociais com deturpações, insultos, ameaças e juramentos de vingança, vejo o demónio do ódio em ação em Portugal..Talvez com todo este ódio um dia consigam, finalmente, ilegalizar o PCP. Porém, deixo esta pergunta: se, hipoteticamente, as tropas do senhor Putin um dia invadissem Portugal, quem de entre estes acusadores do PCP estaria disposto a organizar-se para resistir ao invasor?... E quantos militantes do Partido Comunista Português o fariam?....Eu, que sou militante do PCP e conheço muitas das pessoas que lá militam, não tenho dúvidas que, nessa hipotética e derradeira contabilidade do patriotismo, o PCP ganharia a grande parte dos seus críticos atuais. Mesmo na ilegalidade.. Jornalista