O outono de todos os descontentamentos

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Vão os anos decendo e já do Estio 

Há pouco que passar até o Outono. 

A Fortuna me faz o engenho frio, 

Do qual já não me jacto nem abono 

 (Camões, Lusíadas, canto X, 9) 

O outono não tem, para citar uma expressão contemporânea, uma boa imagem mediática. O cinzento vem substituir-se às cores vivas da primavera e do verão, o vento e a chuva vêm tolher-nos os movimentos, a humidade acentua o frio nos nossos ossos.  

O outono é, contudo, a estação da melancolia, e nada como a melancolia para animar alguns espíritos poéticos. Verlaine falava dos “longos soluços dos violinos do outono”, Eugénio de Andrade diz que “o outono vem vindo, chovem melancolias”, mas já Camões vê no outono o declínio da sua escrita e das suas esperanças. 

Nós teremos chuva, poesia e eleições autárquicas. Estamos todos suspensos dos sinais que essas eleições nos irão dar. Caminhamos, com o mundo, para um regresso das autocracias e das potências permanentemente em guerra por mais poder? Não sabemos. Não podemos saber. Mas é nosso dever resistir. 

No século XVI, Camões soube bem sentir e exprimir a angústia e o desencantamento do seu tempo, em versos sublimes que acertariam bem com os dias de hoje: 

Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho 

Destemperada e a voz enrouquecida, 

E não do canto, mas de ver que venho 

Cantar a gente surda e endurecida. 

O favor com que mais se acende o engenho 

Não no dá a pátria, não, que está metida 

No gosto da cobiça e na rudeza 

Dua austera, apagada e vil tristeza. 

(Os Lusíadas, Canto X, 145)  

Camões diz isto no final do seu poema, depois de toda a exaltação que fez da Pátria e do Império, como se a melancolia e o desencanto fossem o  verdadeiro culminar de uma obra virada para o orgulho da epopeia. Como se, no final da viagem, voltasse a encontrar o Velho do Restelo, que quis esconjurar nos outros cantos. Como as “vanitas”, que em forma de caveiras, surgem na pintura barroca, este momento de mágoa e desalento vem lembrar-nos que toda a grandeza é efémera, porque sempre acabará roída pelos ratos da cobiça e da vil tristeza que arrasta. 

Termina aqui o paralelo. A melancolia é um luto que não reconhece o seu objeto, ensinou-nos Freud. Mas a nossa melancolia neste ano de 2025 tem uma componente de antecipação, que devemos combater: não temos que antecipar o luto pela democracia, antes devemos tudo fazer para não a perdermos. E há muito por fazer.  

Os “violinos do outono” de Verlaine serviram de sigla radiofónica para o desencadear da invasão da Europa pelos Aliados, que levou (sem esquecer a decisiva Frente Oriental, em que os russos combateram) à queda do mais sinistro e mortífero sistema político autocrático que conhecemos, a Alemanha de Hitler. Conhecemos muitos mais, mas o nazismo ficou ligado ao extremar até à morte da pulsão racista e xenófoba, que todas as autocracias trazem consigo. 

Que a “gente surda e endurecida” de que fala Camões, que poderia assim falar de nós, acorde da sua “apagada e vil tristeza” e saiba identificar o inimigo principal, sem mais concessões nem artifícios. É a democracia que está em perigo. 

 Diplomata e escritor 

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