I. Apostando na “transformação estrutural do SNS” o OE para a saúde revela uma ambição raramente assumida em governos anteriores. Modernizar infraestruturas e equipamentos, mais proximidade e liberdade de escolha, mais eficiência e uma resposta de qualidade e em tempo útil, são os objetivos centrais dessa transformação. A expansão de cuidados de proximidade, com novas convenções com os setores privado e social para a gestão de novas (ou já existentes) USF, o reforço da hospitalização domiciliária e dos cuidados continuados e paliativos e, ainda, o aprofundamento da transformação digital revelam-se como eixos nucleares dessas mudanças. Mas a maior novidade está mesmo na liberdade de escolha que o governo se propõe conceder aos cidadãos na utilização de serviços de saúde (públicos ou privados). Não dispomos de muitos elementos que nos permitam perceber o verdadeiro alcance dessa expressão, mas importa desde já chamar a atenção para um elemento imprescindível nesta mudança. A concorrência pode ser um bom estímulo para uma resposta mais atempada e de qualidade, mas exige modelos de supervisão e controlo, para os quais não estamos preparados. A experiência das PPP hospitalares foi um excelente exemplo de controlo de desempenho na prestação de cuidados, mas, pelo contrário, as convenções hoje existentes em meios complementares, cirurgias e cuidados continuados revelam fragilidades técnicas grosseiras e algumas dúvidas sobre a pertinência e adequação das despesas.II. A análise do OE pressupõe sempre uma perspetiva histórica do setor da Saúde, apreciando promessas e desempenhos anteriores, tendências e resultados.Os saldos das contas do SNS dos últimos 10 anos (Conselho de Finanças Públicas,2025) têm sido sempre negativos (2015:-372M€; 2024: -1378M€). O ano menos mau deste ciclo foi o de 2016 (-116M€) e registamos picos negativos com a COVID (2021 e 2022). Mas o maior desequilíbrio foi mesmo em 2024. Fica a ideia de que os recursos excecionais que foram necessários na COVID se transformaram em incrementos definitivos de despesa o que pouco abona na análise do desempenho das instituições.Para o próximo ano o governo estima uma despesa corrente do SNS de 16,07 mil M€, inferior em cerca de 300M€ face à estimativa apresentada para este ano (16,34 mil M€). Esta descida expetável de 1,6% na despesa corrente baseia-se na combinação de uma diminuição de 10,1% na rúbrica de aquisição de bens e serviços e de um aumento de 5% em pessoal. Estas rúbricas representam mais de 90% das despesas correntes do SNS, praticamente em partes iguais. Se o aumento da despesa em pessoal nos parece inquestionável e até uma estimativa conservadora, já o corte de 10% na aquisição de bens e serviços nos suscita muitas dúvidas. Importa perceber que os chamados “fornecimentos e serviços externos” ocupam a parte de leão dessas aquisições, com os produtos farmacêuticos com mais de 48% dessa rúbrica e os meios complementares privados com mais de 16% (as duas rúbricas cerca de 65% do total). Não nos parece, assim, possível esta baixa sensível nas despesas de aquisição de bens e serviços, até porque todo o histórico aponta em sentido contrário. Na verdade, as duas despesas que mais irão crescer este ano, nas aquisições, são justamente os produtos farmacêuticos (mais 6% nos hospitais e 12% nas farmácias comunitárias) e os meios complementares (mais 11%), de acordo com a execução orçamental verificada em agosto último (DGO, Síntese da Execução Orçamental do SNS,2025). Não se vislumbram no OE medidas ou alterações que influenciem ou a diminuição de doentes, ou a maior racionalização nas prescrições ou a baixa de preços dos medicamentos, por um lado, ou a diminuição no consumo e/ou nos preços de exames complementares de diagnóstico e terapêutica no setor convencionado, por outro lado. Pelo contrário, mais acesso, mais proximidade e liberdade de escolha, associados a uma população cada vez mais envelhecida e portadora de doenças crónicas, e ainda a forte inovação tecnologia, poderão trazer um aumento inexorável da despesa pública nessas rúbricas. A recente intervenção do Diretor Executivo do SNS junto das administrações das ULS para a redução da despesa em aquisições de bens e serviços em 2026, sem medidas consequentes que se conheçam, mais não será do que uma intenção sem grandes probabilidades de sucesso.As despesas de investimento no SNS são sempre relegadas para segundo plano face à pressão da despesa corrente. Por isso, não é de estranhar que em 2024 as despesas de capital tivessem representado apenas 0,9% do total das despesas do SNS (129M€ para mais de 14 mil M€ no total). Sucessivos governos ao longo da última década têm descurado a renovação do parque hospitalar, a construção ou reabilitação de centros de saúde, a ampliação da rede de cuidados continuados e paliativos ou a modernização dos sistemas de informação e comunicação.Esperemos que para 2026 o governo não falhe no seu propósito de incrementar em 65% as despesas de investimento face ao corrente ano. Será uma boa notícia para a população e para os profissionais.III. Ao contrário do que a referência constante à falta de recursos humanos no SNS poderia indiciar, entre 2017 e 2022 os profissionais de saúde aumentaram de 13,12 por mil habitantes para 15,09, um crescimento superior a 15% em cinco anos. No caso dos médicos, o número de especialistas no SNS passou de 1,76 por mil habitantes para 2,09, um crescimento de cerca de 19%, superior, como se constata, face às restantes profissões (PLANAPP,2025). É certo que a distribuição territorial dos profissionais apresenta assimetrias regionais crónicas bem conhecidas, com o Norte mais preenchido e as regiões de Lisboa, Algarve e Alentejo mais deficitárias, sobretudo na área médica. Impõem-se políticas públicas na formação e colocação dos médicos que contribuam para corrigir este estigma, mas na proposta de OE a referência a incentivos para colocação nas zonas carenciadas é semelhante à de anos anteriores e suspeita-se que produza os mesmos resultados…IV. Olhando agora para a atividade desenvolvida na prestação de cuidados verificamos que as consultas médicas presenciais nos cuidados primários baixaram mais de 16% entre 2019 e 2024, se bem que se tenha assistido a um boom nas consultas à distância, quase inexistentes antes da COVID e que, entretanto, explodiram com mais de 60% de novos episódios. Esta compensação traduziu-se num crescimento global das consultas em cuidados primários de 7,8%, ainda que, eventualmente, com um valor acrescentado mais reduzido. Entretanto, o número de utentes inscritos nos centros de saúde desceu pela primeira vez em 2024 (fruto, provavelmente, da atualização dos ficheiros) e o número de inscritos sem médico de família passou de 690 mil em 2018 para 1,5 milhões em 2024.A atividade hospitalar pode ser sinteticamente medida pelo volume da procura em 4 eixos fundamentais: a) consultas externas, com crescimento de 12,9% entre 2019 e 2024; b) doentes internados (-1,2%); c) cirurgias (+26,7%, sobretudo devido ao forte incremento da cirurgia ambulatória); d) urgências (-3,9%). A descida do volume de urgências é um bom indicador em condições idênticas de disponibilidade, mas no nosso caso, com o encerramento intermitente de serviços ao longo dos últimos anos, poderá ter outras explicações. Apesar da diminuição do volume de casos, os tempos de triagem pioraram de 63% de cumprimento em 2019 para 56% em 2024 (PLANNAP, 2025).V. É insofismável que temos um problema de gestão no nosso SNS: aumento significativo e permanente de despesas, crescimento significativo de profissionais, atividade assistencial com crescimentos modestos e por vezes com tendência de diminuição, população menos protegida por médico de família.Necessitamos de medidas estruturais que devolvam à gestão das instituições a autoridade que se tem perdido ao longo dos últimos anos. E precisamos urgentemente de ferramentas de avaliação que meçam o volume, a complexidade, a efetividade, a eficiência e a qualidade dos atos realizados. Mas também se impõem iniciativas legislativas do governo ou do parlamento, que corrijam muitos dos abusos e subterfúgios que encontramos no cumprimento dos deveres funcionais por parte de alguns profissionais, como que se estivessem num regime autogestionário, apenas focado nos seus interesses pessoais. Modelo remuneratório, horários de trabalho, escalas, constituição das equipas, férias e dispensa de trabalho de urgência a partir dos 50 anos para os médicos, são exemplos de áreas onde o poder político tem de intervir se pretende, de facto, uma resposta estrutural. As administrações das ULS sentem-se de mãos atadas para pôr a funcionar urgências no Natal ou no Verão, por respeito de direitos dos profissionais, mesmo que isso implique o encerramento dos serviços ou pagamentos exorbitantes e sob chantagem a tarefeiros. O Ministério da Saúde necessita de dispor de outras armas que eliminem regras ou privilégios hoje manifestamente inaceitáveis face ao estado de carência dos serviços. Em política, o interesse público está sempre acima dos grandes ou pequenos interesses corporativos, mesmo que se imponha um novo enquadramento legal ou regulamentar. Estes exemplos, e outros até escandalosos que infelizmente têm ocorrido, são a razão explicativa para a acentuada quebra de produtividade dos recursos humanos do SNS nos últimos dez anos (cf. Barros,P.P, et.al., Nova SBE, Observatório da Despesa em Saúde/08, Nov. 2024). VI. Em conclusão, a aprovação do OE para 2026, apesar das boas intenções e da vontade clara da Ministra da Saúde em dotar o SNS de capacidade de resposta, mais responsiva e de qualidade, pode não ser suficiente para alterar o atual panorama em que vivemos. Para além das contas parecerem excessivamente otimistas, os vícios e deficiências estruturais que nos afligem necessitam de medidas de outra natureza, de base legal e regulamentar, que introduzam novas ferramentas de organização e de gestão de recursos. As próprias administrações dos serviços.* ex-secretário de Estado da Saúde