Em Outubro de 2022, Josep Borrell, então Alto Representante da União Europeia, convidado a discursar na Academia Diplomática Europeia, em Bruges, descreveu a Europa como um “jardim” funcional, contrastando-o com o “resto do mundo”, que caracterizou como uma “selva” que a poderia invadir. Nesta extraordinária e perturbadora imagem, ecoa a noção medieval do “monstro”: originária do latim monstrum, a palavra sugeria que a anomalia de certos seres funcionava como um espelho, uma “mostra” da nossa própria “normalidade”. Como observou Santo Agostinho, “Os monstros não são contra a natureza, mas contra a natureza tal como a conhecemos; existem segundo uma razão que nós ignoramos.”O perigo para quem se embala na fantasia de habitar um “jardim” é o choque de, ao ser colocado perante o espelho, se ver refletido como um selvagem. Analisemos, pois, o desequilíbrio persistente nas relações entre o Ocidente – o “jardim” – e o “Resto” do mundo – a “selva” –, desde 1945 até à atualidade, considerando o exercício do poder, a definição de legitimidade e o recurso à coerção.Os actos de guerra ilegais, a tortura e a espionagem ocidentais permanecem impunes perante o Direito internacional. Pelo contrário, qualquer resposta ou resistência não-ocidental é de imediato punida com sanções, mandados de captura, assassinatos ou extradições. Desde 1945, os países ocidentais têm definido a legalidade e a moralidade das relações internacionais, mas agem fora delas sempre e quando lhes convém. Os países não-ocidentais têm sido constrangidos por essas mesmas normas e punidos quando resistem.Os EUA e os seus aliados ocidentais intervieram militarmente em numerosos países não-ocidentais, como a Coreia, o Vietname, o Iraque, o Afeganistão, a Líbia a Síria, a Jugoslávia, o Mali e a Somália. Neste mesmo período, não se regista uma única intervenção militar de países não-ocidentais em território ocidental. Desde 1945, através dos seus serviços secretos e em benefício de interesses estratégicos e empresariais, o Ocidente patrocinou uma pletora de golpes de Estado, do Irão (1953), Guatemala (1954), Congo (1961), Brasil (1964), Indonésia (1965), ao Chile (1973) e Bolívia (2019). Neste período, foram documentados mais de duzentos casos documentados planeados ou executados de assassinatos e atentados políticos por potências ocidentais, de Mossadegh e Lumumba a Allende e Sankara de Amílcar Cabral a Kadhafi e Soleimani. Em contrapartida, nenhum país não-ocidental orquestrou um golpe de Estado no Ocidente, nunca houve uma operação, planeada ou executada de países não-ocidentais contra um líder ocidental, e nenhuma cidade ocidental foi bombardeada por nações não-ocidentais.O Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia, tem desde sempre agido como um instrumento de lawfare contra quem os países ocidentais vêem como adversários a abater ou a vergar: focando-se exclusivamente em acusados africanos e árabes, ou europeus não alinhados (os sérvios). Nenhum alto dirigente dos EUA, da NATO ou de Israel foi alguma vez formalmente condenado pelo TPI – uma impunidade gritante face à ilegalidade da invasão do Iraque e ao genocídio de Gaza. A imposição de sanções económicas e financeiras são uma ferramenta predominantemente ocidental. Mais de 35.000 sanções e micro-sanções unilaterais foram impostas por países ocidentais a Estados não-ocidentais, causando pelo menos 38 milhões de mortes no Sul Global (segundo um estudo do The Lancet Global Health). Que se conheça, nenhum país não-ocidentais impôs sanções a Estados ocidentais e, ergo, nenhum cidadão ocidental morreu devido a sanções não-ocidentais.Os meios de comunicação e as plataformas digitais ocidentais dominam o fluxo global de informação, definindo os quadros de legitimidade e controlando os termos das narrativas. Até ao surgimento de plataformas como o TikTok ou do WeChat, os meios não-ocidentais foram sistematicamente marginalizados ou censurados. Na economia, os programas do FMI e do Banco Mundial impõem austeridade, privatizações e liberalização dos mercados a países não-ocidentais - ou então a países periféricos europeus como Portugal, Grécia ou Irlanda, mas sempre sob controlo institucional ocidental. Nenhum país ocidental, digamos “central”, foi alguma vez sujeita a tais imposições.Os países ocidentais praticam um reconhecimento selectivo da autodeterminação, apoiando a independência do Kosovo, mas negando-a à Palestina, ao Sahara Ocidental ou à Somalilândia. Nenhum Estado ocidental foi alguma vez privado de soberania por acção de países não-ocidentais. Até recentemente, o Ocidente controlou as moedas de reserva globais e o sistema financeiro internacional (SWIFT) e a maioria das instituições financeiras internacionais, o que significa que apenas o Ocidente pode tornar uma sanção verdadeiramente global. As medidas não-ocidentais carecem de impacto fora do seu território ou da sua esfera de influência imediata.A assimetria militar, económica, judicial, informacional e moral é estrutural. Assim, quando viramos o espelho da História para o “jardim”, a imagem que dele emerge não é a do jardineiro benigno, mas a de uma força hegemónica implacável. O “monstro” que o Ocidente vê refletido não é o “Outro” da selva, mas a sua própria face, distorcida pelo exercício desregrado de um poder que há muito deixou de se reconhecer nos limites da lei que ele próprio escreveu. A grande anomalia, a verdadeira “mostra” contra a natureza tal como a conhecemos, não está na selva, mas na crença de que um jardim pode florescer eternamente, alheio ao ecossistema global do qual depende e que simultaneamente devasta.