O novo espectro nuclear: entre a retórica russa e o escudo americano

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A dissuasão nuclear regressou ao centro da política internacional, não como sombra do passado, mas como instrumento de cálculo estratégico num mundo onde o pragmatismo substituiu a ideologia.

Desde o início da invasão da Ucrânia, Moscovo reincorporou o léxico nuclear como pressão psicológica, tentando reinstalar o medo existencial da Guerra Fria. Putin e Medvedev, com ameaças veladas e declarações apocalípticas, procuraram acenar com o espectro da destruição mútua. Mas o mundo já não é bipolar – e os Estados Unidos deixaram de responder com subtilezas.

Washington reagiu com linguagem simbólica e gestos tangíveis. A deslocação de submarinos estratégicos após insultos russos foi mais do que demonstração de força: sinalizou que o bluff não ficaria sem resposta. A Administração americana deixou claro que a retórica nuclear seria reciproca e que cada palavra de Moscovo seria pesada contra uma escalada visível. A era dos silêncios estratégicos terminou.

O maior programa de modernização nuclear dos EUA desde os anos 1980 foi acelerado por imperativos geopolíticos. O míssil Sentinel substituirá os Minuteman; os submarinos Columbia reforçam a componente marítima; e o bombardeiro furtivo B-21 Raider marca o regresso da aviação estratégica. Este triângulo tecnológico é doutrinário, orçamental e industrial. A dissuasão tornou-se pilar da economia de defesa americana, com implicações que transcendem o campo militar.

A esta modernização soma-se o escudo antimíssil americano – a “cúpula dourada”. O sistema GMD, os intercetores Aegis e o THAAD formam uma rede global apoiada por sensores e satélites. Este projeto consome centenas de milhar de milhões de dólares e representa não apenas barreira defensiva, mas diferencial estratégico e económico. A economia de defesa americana transforma-se em motor de inovação tecnológica e multiplicador industrial. A “cúpula” é também mensagem: os EUA não se limitam a deter – preparam-se para sobreviver ao impensável.

O contexto global é distinto. A Guerra Fria era binária; hoje o sistema é multipolar e fragmentado. A Rússia continua central, mas já não é única. A China emerge como terceiro vértice efetivo, enquanto a Índia e o Paquistão mantêm equilíbrios instáveis. O Reino Unido e a França conservam alcance global, Israel preserva ambiguidade estratégica e a Coreia do Norte usa o nuclear como chantagem. O mundo multipolar é mais pragmático e transacional: França e Alemanha aproximam-se em defesa estratégica; a Arábia Saudita reforça laços com o Paquistão; a Índia coopera tecnologicamente com Israel. A dissuasão tornou-se moeda geopolítica.

Neste quadro, a Ucrânia é ponto de fricção. A retórica russa sobre armas nucleares táticas abre espaço a respostas simétricas. Embora seja Estado não-nuclear, o seu conhecimento técnico e herança infraestrutural sugerem hipótese de reversão. Em cenário de ameaça existencial extrema, o tabuleiro pode inverter-se. Moscovo banalizou o nuclear e corroeu o seu valor simbólico. Quando a ameaça se torna quotidiana, a dissuasão perde eficácia.

Mas há um custo invisível: o económico. Uma corrida armamentista nuclear, alimentada também por escudos defensivos, terá efeitos graves sobre as finanças globais. Sistemas de defesa drenam recursos industriais e tecnológicos de forma difícil de sustentar. Potências com capacidade financeira – EUA, China, possivelmente Índia – resistirão; as restantes reconfigurarão prioridades ou dependerão de terceiros. O nuclear regressou, mas já não é apenas medo: é engenharia, economia e poder industrial. A dissuasão do século XXI mede-se não só pela ogiva, mas pelo escudo que a pode travar. Quem dominar essa cúpula dourada definirá as novas regras do mundo.

Analista de Estratégia, Segurança e Defesa

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