O necessário regresso do realismo

A derrocada da União Soviética e o fim do internacionalismo comunista foram os factores fundamentais da onda democrática que varreu o mundo no pós 1989. Para além da derrota dos regimes comunistas e aparentados, que deixaram de ter o apoio soviético sem o qual a sua subsistência era inviável, também houve uma alteração da política americana e ocidental. O fim, ou pelo menos a diminuição, da competição internacional e uma maior atenção das opiniões públicas levou o Ocidente a ir-se afastando dos regimes não democráticos que lhe tinham sido úteis. Na América Latina, África e Ásia. Uma excpeção relevante terão sido os países árabes do Médio Oriente, onde se acreditava, com justificado razão, que a competição, sendo diferente, subsistia. Coisa que o 11 de Setembro e os ataques terroristas na Europa vieram sustentar, e a Primavera Árabe não desmentiu.

O final do século passado e o início deste criaram em muitos a ilusão da possibilidade de uma política internacional fundamentalmente assente em bons princípios. Todos os regimes autoritários seriam nossos inimigos, nenhum poderia ou deveria ser nosso aliado. Claro que tudo isto teve excepções relevantes, de Cuba à Arábia Saudita passando por vários simulacros de democracia em África, mas a regra geral parecia dever ser esta.

Nesse cenário optimista e benevolente, a União Europeia desenvolveu a sua tese de potência normativa, influente por força do exemplo, dos fundos e, nas proximidades, pela expectativa de adesão. E pela política comercial aberta.

A emergência da China, o processo de crescimento económico e relevância internacional sem qualquer alteração da natureza do regime, ao contrário do que chegou a ser teorizado, veio alterar este estado de coisas. Chame-se o que se chamar ao mundo em que vivemos (e nova Guerra Fria é um péssimo nome porque há enormes diferenças entre aquele e este tempo, sendo uma das maiores a interdependência económica), o dado mais relevante é que a competição está de novo no centro da política internacional.

Neste cenário, o Ocidente, seja a América, sejam os seus aliados, incluindo a Europa, não se pode dar ao luxo do mais puro idealismo, escolhendo como aliados e amigos apenas os democratas e liberais certificados. Até porque alguns novos desafios, como o clima, não se respondem assim. Mas também não pode perder toda a superioridade moral. Não só porque o nosso modelo não o acomoda, mas também porque as opiniões públicas (talvez mais a europeia do que a americana) não o tolerariam.

Num mundo onde os europeus são crescentemente responsáveis pela sua segurança, como temos aprendido, muito mais relevante do que discutir o voto por maioria na política externa, é reconhecer esta circunstância. E responder em conformidade.

Sobre a necessidade de pragmatismo ou realismo, ela só será aceite pelas opiniões públicas se houver maior consciência da ameaça. Talvez isso ajude a explicar a crescente atenção à eventual invasão de Taiwan. Não serão só as movimentações militares da China, reais, mas também alguma necessidade de clarificação da natureza do adversário.

Sobre os instrumentos, a competição também torna a tetralogia europeia desadequada. O exemplo não comove os autoritários, os nossos fundos competem com os apoios chineses (mesmo que com juros, no imediato interessam aos regimes), a adesão é reconhecidamente improvável em larga escala, e a política comercial está a ser posta em causa por tendências proteccionistas fora e dentro da Europa.

É neste quadro, competitivo e de maior responsabilidade europeia, e não numa sucessão de sobressaltos inflamados, que se tem de pensar a política externa europeia. Para começar, precisamos de uma noção partilhada de riscos e interesses comuns.


Consultor em assuntos europeus

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