A nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos marca uma rutura profunda com a ordem construída ao longo das últimas oito décadas. A administração Trump não procura reformar o sistema multilateral, mas substituí-lo, e fá-lo com uma clareza desconcertante ao afirmar que na política externa e de defesa “America First” não é um slogan eleitoral, mas a bússola oficial da maior potência mundial.A primeira rutura é conceptual. A estratégia declara, sem rodeios, que o ciclo de globalismo do pós Guerra Fria terminou. As instituições multilaterais, que durante décadas foram essenciais para moderar tensões, arbitrar conflitos e equilibrar ambições, surgem agora retratadas como limitações injustificáveis à ação dos Estados Unidos. A administração Trump propõe um regresso a um mundo pré institucional, onde a força, a transação imediata e o cálculo de oportunidade se sobrepõem a qualquer ideia de bem comum internacional.A segunda rutura é económica e confirma o retorno ao protecionismo estratégico. A China é apresentada como a principal distorção do comércio global e a resposta americana passa por uma reindustrialização agressiva, pela proteção de cadeias de valor críticas e por alianças condicionais onde os parceiros alinham não por convicção, mas por necessidade. Para a Europa, esta é a escolha desconfortável entre ficar dependente de Washington ou aceitar um confronto económico, mesmo que indireto, com o seu principal aliado histórico.A terceira rutura é estratégica e possivelmente a mais disruptiva. Para a administração Trump, os Estados Unidos deixam de ser o garante da segurança europeia. Os aliados devem assumir a responsabilidade primária pela defesa do continente, expressão diplomática que equivale a afirmar que a Europa está sozinha. Já não basta gastar mais. É preciso construir, de raiz, uma arquitetura de segurança europeia sustentada em recursos, capacidades e decisões próprias.Com esta retirada americana, o multilateralismo das últimas oito décadas perde o seu pilar central e a Europa tem de decidir se quer ser protagonista ou figurante num sistema internacional em acelerada fragmentação. Tem de transformar peso económico em poder político, autonomia militar em soberania efetiva e diplomacias nacionais dispersas numa estratégia comum. Se falhar, será empurrada para a irrelevância num mundo cada vez mais organizado em blocos que disputam hegemonia e sobrevivência.O desafio é monumental. A Europa precisa de uma base industrial de defesa robusta e autónoma. Precisa de falar com uma só voz em política externa, mesmo quando isso implicar enfrentar divergências internas profundas. Precisa de transformar o mercado comum num verdadeiro instrumento de poder geoeconómico. E precisa, sobretudo, de coragem estratégica para ocupar o espaço que o mundo lhe oferece e para impedir que outros o ocupem por ela.Para se substituir aos Estados Unidos como potência normativa global, a Europa terá de construir novas alianças, dialogar com democracias mas também com países que não partilham integralmente os seus valores, e erguer pontes onde outros erguem muros. Esta será a condição para continuar a defender um modelo internacional baseado em regras, abertura e cooperação.Hoje, a linha que separa uma Europa estratégica de uma Europa irrelevante é mais fina do que parece. E num mundo em fragmentação acelerada, repetir erros antigos não seria apenas imprudente. Seria fatal, porque a História não espera por atores indecisos e não perdoa hesitações estratégicas.