O Mundo em Mudança
"Negar os direitos humanos das pessoas é questionar a sua humanidade"
(Nelson Mandela)
Há uns dias, os sumptuosos salões da cidade russa de Kazan acolheram, sob o olhar atento de Vladimir Putin, um encontro histórico dos BRICS.
Fervilhando com poder, o bloco tem por base uma aliança formada em 2009 entre o Brasil, a Rússia, a Índia e a China, que passou a incluir em 2010 a África do Sul e, mais recentemente, à laia de expansão tectónica, a Arábia Saudita, o Egipto, os Emirados Árabes Unidos, a Etiópia e o Irão. Até a Turquia, nação estrategicamente posicionada entre o Ocidente e o Oriente, há muito inserida no complexo tear da NATO e envolta em tensões com o Ocidente, manifestou interesse em aderir a este concerto de nações - esbatendo fronteiras entre blocos de poder que outrora pareciam inamovíveis.
Durante décadas, os EUA e os seus aliados ocidentais ergueram-se como um verdadeiro colosso, moldando a ordem mundial à sua imagem (por meio de uma justaposição de poder militar, económico e diplomático) num enquadramento em que os EUA actuavam como maestro incontestável. Hoje, a China rege uma nova sinfonia de influências, no seio da qual os BRICS (cujo PIB combinado representa cerca de um terço do total global) são os maestros da mudança.
A impotência da ONU
O consequente declínio da influência ocidental é evidente na crescente ineficácia da ONU (criada para assegurar uma ordem internacional liberal no período pós-guerra) como veículo para manutenção da paz e promoção do desenvolvimento.
O Conselho de Segurança da ONU, que foi em tempos um timoneiro firme da paz global, encontra-se hoje paralisado pelos interesses divergentes dos seus membros permanentes; incapaz de agir de forma decisiva. O poder de veto, frequentemente usado de forma abusiva, tem paralisado decisões cruciais, assim prolongando crises (como a guerra na Ucrânia e o conflito no Médio Oriente).
No plano económico, as instituições de Bretton Woods, antigos baluartes do desenvolvimento global, adquirem hoje tons anacrónicos e são ultrapassadas por iniciativas alternativas, como a Nova Rota da Seda, concebida pela China, que promete inaugurar uma nova era de cooperação e de prosperidade. O Ocidente é progressivamente relegado ao papel de mero espectador, incapaz de rivalizar com a envergadura dos investimentos e com a visão estratégica que Pequim tem vindo a implementar.
O Conflito no Médio Oriente
O Médio Oriente, uma região cronicamente atormentada por conflitos, é talvez o exemplo mais trágico do fracasso internacional na promoção da paz. Apesar de inúmeras iniciativas, processos de paz e esforços diplomáticos, a região continua imersa em violência e em instabilidade, o que pode ser atribuído a diversos factores.
Em primeiro lugar, a actuação das grandes potências é regida pela chamada realpolitik que mina, com constância, esforços genuínos para alcançar a paz na região. As grandes potências têm interesses profundamente enraizados no Médio Oriente (que vão desde a segurança energética e o controlo de rotas comerciais até ao domínio geopolítico) e que colidem com frequência, levando à obstrução de iniciativas de paz que não se alinham com os respectivos objectivos estratégicos.
Em segundo lugar, o Médio Oriente é uma teia intrincada de frágeis alianças e de rivalidades antigas, pelo que os processos de paz são frequentemente frustrados por eventos inesperados ou por realinhamento de interesses. A cada nova tentativa falhada no sentido de semear a paz, as fundações da concórdia e do entendimento parecem ficar mais distantes.
Por fim, a erosão da ordem liberal trouxe consigo uma crescente indiferença para com valores alicerçados na justiça e nos direitos humanos, pilares essenciais na construção de uma paz duradoura. À medida que a influência do Ocidente diminui, decresce também o relevo desses princípios na arena internacional.
A Guerra na Ucrânia
A guerra na Ucrânia insere-se neste cenário mundial de transição e de reconfiguração de poder, onde as tensões entre o Ocidente e as potências emergentes se intensificam. Para além de ser um palco de confronto militar directo, a guerra na Ucrânia consiste numa batalha geopolítica entre a ordem ocidental (liderada pelos EUA e pela União Europeia) e as potências adversárias (nomeadamente a Rússia e a China).
A resposta ocidental, centrada em sanções económicas e no apoio militar à Ucrânia, tem sido insuficiente para dissuadir Moscovo, continuando a Rússia a contar com o apoio (ora velado ora directo) de aliados estratégicos, como a China.
Como membro dos BRICS, a Rússia não só não é alvo de isolamento internacional (como o encontro em Kazan bem mostrou) como encontra apoio económico, comercial e diplomático (directo ou indirecto) que mitiga os efeitos das sanções impostas pelo Ocidente, permitindo-lhe prolongar o esforço de guerra.
Conclusões
A instabilidade que hoje varre o Médio Oriente e a Ucrânia não é apenas um reflexo das dinâmicas regionais, mas também um sinal claro de um processo de transformação profunda da ordem global.
Neste cenário, as alterações nos círculos de poder a nível mundial são inescapáveis. Contudo, é imperativo não perder de vista o que está verdadeiramente em jogo: a sobrevivência de um modelo de coexistência baseado no respeito mútuo e na preservação de direitos fundamentais; a defesa de um compromisso global fundado em princípios basilares, como a paz, a justiça e a dignidade do ser humano.
Estes valores éticos elementares (que há não muito tempo moldavam a arquitectura das relações internacionais) devem ser lembrados, reavivados e colocados no centro dos processos decisórios globais. O rumo da nossa história colectiva depende da capacidade de colocar esses pilares essenciais da convivência mundial à frente de interesses de curto prazo.
Nota: A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico