O movimento “Me Tchu”

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Há quase 15 anos no Brasil, o autor deste texto já assimilou muitas coisas mas continua sem entender outras no simpático, gigantesco e jovem país de acolhimento.

A relação diferente com o tempo é uma das assimiladas: aqui é comum um restaurante, ou outro comércio, colocar orgulhosamente por baixo do nome algo como “desde 1998”, “desde 2003” ou, o recorde até agora, “desde 2016”; em Portugal, os estabelecimentos só se vangloriam se tiverem sido fundados, no mínimo, no início do século XX (ou em 1864, como o DN). Mas, afinal, como dito acima, o Brasil é jovem.

Depois do tempo, o espaço. Por mais que se saiba de antemão, demora-se a tomar consciência de que a distância entre São Paulo e Fortaleza, por exemplo, é idêntica à entre Lisboa e Varsóvia. Mas, afinal, o Brasil é gigantesco.

A habituação ao “não” mais longo do mundo é outra barreira ultrapassada: “então, meu querido, sabe o que acontece, infelizmente, fica meio difícil, acho que vou ficar te devendo, mas vamos combinar sim” é a tradução, em português local, para o lacónico “não”, em português de Portugal. Mas, afinal, o brasileiro é simpático.

E se a animosidade contra a colonização portuguesa é compreensível, alguns argumentos para a justificar, não. Como o de que o país estaria muito melhor se tivessem sido os neerlandeses a colonizá-lo - sim, os mesmos que colonizaram o Suriname, essa potência situada no 124º lugar no IDH, e andaram pela África do Sul, esse exemplo de tolerância racial.

Fora o célebre “devolvam o nosso ouro” proferido não pelos povos originários invadidos, esses sempre souberam que ouro mesmo neste planeta são as florestas e os rios, mas por descendentes de italianos, alemães, árabes ou coisa que o valha que se acham donos do metal mesmo tendo chegado cá emigrados há meia dúzia de décadas - ou, mais cómico, por descendentes de portugueses, isto é, por netos dos supostos ladrões.

Além, claro, daqueles motoristas de Uber, negros, que perguntam ao passageiro se é verdade que se emigrarem para Portugal podem ser alvo de racismo. Bom, poder, infelizmente, podem mas se continuarem no Brasil, onde os negros são 69% da população carcerária e em que mais de 80% dos mortos em operações policiais são afrodescendentes, as probabilidades são bem maiores.

Mas falemos de detalhes menos sérios como a mania dos brasileiros, mesmo os que falam inglês melhor do que este jornalista, em pronunciar “two” como “tchu”. Ele é “one, tchu, three”, a banda irlandesa “U Tchu”, o movimento “Me Tchu”…

Outra: “os 32 minutos do segundo tempo” usados no futebol em vez de “77 minutos” como contabiliza o resto do mundo, ou seja, por preguiça de fazer uma simples conta de somar usa-se o triplo dos caracteres.

E se perguntar a um brasileiro que idade tinha numa ocasião qualquer do passado, por alguma razão, na maioria das vezes respondem “tinha de 15 para 16 anos”, “de 19 para 20”, “de 32 para 33”.

Enfim, pequenos desabafos de quem está há quase 15 anos no Brasil. Ou... de 14 para 15.

Jornalista, correspondente em São Paulo

Diário de Notícias
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