O Ministério Público é a raiz de todos os males?

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Basta ouvir qualquer debate sobre a justiça portuguesa para se concluir que o Ministério Público (MP) é a raiz de todos os seus males!

Ora, importa desmontar algumas das muitas afirmações maldosas em que são pródigos vários comentadores:

- o MP “faz o que quer, quando quer e não presta contas a ninguém”! Porém, os despachos proferidos em inquérito podem ser apreciados tanto pela via da intervenção hierárquica como pela via judicial, através da abertura da fase de instrução. Além disso, a atuação dos magistrados do MP pode ser objeto de processo disciplinar pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) — órgão que integra sete membros eleitos pela Assembleia da República e dois designados pelo Governo. Só nos anos de 2022, 2023 e 2024 foram instaurados, respetivamente, 64, 50 e 67 processos disciplinares.

- O Ministério Público adota um “comportamento pidesco” quando não destrói escutas consideradas irrelevantes. No entanto, a destruição dessas conversações não compete ao MP, mas sim ao juiz. Acresce que muitas escutas SÓ podem ser destruídas após o termo do processo. Além disso, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem reiterado que os arguidos devem ter acesso a TODAS as escutas efetuadas, e não apenas às que foram transcritas.

- “quem viola o segredo de justiça é o MP! Contudo, em muitos processos, a informação mantém-se secreta durante anos e apenas é do conhecimento da comunicação social quando se abrem os processos às partes. Por outro lado, aqueles que de forma veemente imputam a responsabilidade da fuga ao MP fazem-no de forma gratuita e sem qualquer prova – o MP parece não ter direito a beneficiar do princípio da presunção da inocência.

-e o que dizer sobre a afirmação de que “as queixas anónimas nascem nas polícias ou no MP”? Apenas que é uma imputação difamatória e infundada porquanto nunca se apurou ter tal ocorrido. Aliás, repare-se que o número de denuncias anónimas recebidas através da aplicação “Corrupção: Denuncie aqui”, foram, em 2022, 2023 e 2024, respetivamente, de 909, 1086 e 1026. Será credível que o MP tenha apresentado estes elevados números de denuncias anónimas, criando artificialmente processos que apenas iriam fazer crescer o seu trabalho?

-e, no meio de toda esta insanidade também se afirma que “os juízes andam às ordens do MP”. Porém, apenas em 2024, o MP interpôs 1438 recursos — sinal de que, afinal, continuamos a ter muitos juízes bem pouco “obedientes”.

Será mera coincidência que a atual diabolização do Ministério Público gire em torno de meia dúzia de processos que envolvem figuras influentes da sociedade portuguesa? Mesmo admitindo que possam ter ocorrido erros — o que é inerente à condição humana — estes representam uma ínfima parcela num vastíssimo volume de atividade. Só em 2024, o DCIAP tramitou 2.762 inquéritos, enquanto os restantes departamentos do MP movimentaram 776.088 inquéritos.

Todas estas e outras barbaridades proferidas por várias personalidades da praça pública devem ser analisadas com um profundo espírito crítico. É preciso entender a quem interessa a descredibilização do MP, assim como perceber o fim último da estigmatização e da deslegitimação radical que esta instituição está a sofrer.

Estamos perante uma crítica destrutiva e não construtiva: prima o silêncio sobre as melhorias concretas que devem ser implementadas. A única coisa que se deseja é colocar “na ordem” os Procuradores da República e terminar com a autonomia do MP. Porém, é essa autonomia que constitui o garante de que TODOS podem ser investigados, independentemente do seu estatuto social, económico ou político.

E importa ter sempre em mente que muitos daqueles que são hoje os ferozes críticos foram já responsáveis políticos que, pela sua inércia, contribuíram para o desfalque dos meios humanos, periciais, tecnológicos e informáticos do MP. É caso para questionar se esta política de desinvestimento nos tribunais, e no MP em particular, e esta transformação dos magistrados do MP em bodes expiatórios de tudo o que está mal na justiça, não se encontra em estreita relação com o objetivo de fundamentar a destruição de um Ministério Público de matriz democrático.

É inegável que há muito que melhorar no funcionamento da justiça. e há que aumentar a sua eficácia, eficiência e celeridade. Para tanto há que proceder a mudanças e retirar ensinamentos do que falhou. Mas o caminho a percorrer não pode passar por denegrir a totalidade da instituição e o destino nunca pode ser um MP refém do poder político ou económico.

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