O mercado sombra da venda de créditos bancários

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A prática generalizada da venda de carteiras de crédito em incumprimento, ou Non-Performing Loans (NPL), pelos bancos portugueses foi a resposta encontrada à crise financeira de 2008 e à subsequente crise da dívida soberana europeia. Pressionadas pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo Banco de Portugal (BdP) para reduzir os seus níveis de ativos tóxicos, que ameaçavam a solvabilidade do sistema, as instituições financeiras nacionais encontraram na venda em massa destas carteiras o mecanismo mais eficiente para "limpar os balanços". Do ponto de vista macroeconómico, a estratégia foi enquadrada como uma história de sucesso. Portugal foi mesmo apontado como um "case study" na gestão da crise do malparado, tendo conseguido reduzir o rácio de NPL do sistema de um pico de quase 18% em 2016 para valores a rondar os 2,4% no final de 2024. No entanto, por detrás deste aparente sucesso, esconde-se uma realidade, para muitos, perversa. A necessidade de resolver uma crise sistémica deu origem a um conjunto de players especulativos habituais e a um negócio altamente lucrativo, construído sobre as dificuldades financeiras de famílias e empresas. O volume de transações neste mercado atingiu proporções impressionantes. Nos anos de pico, entre 2018 e 2019, as operações anuais chegaram a movimentar entre 7 e 8 mil milhões de euros. Após uma quebra em 2020 devido à pandemia, o mercado recuperou o vigor e contínua a revelar-se excecionalmente ativo. O que começou como uma medida de saneamento, de emergência, transformou-se num negócio especulativo e altamente lucrativo. Este mercado é dominado por um conjunto bem definido de intervenientes. De um lado, como vendedores, encontram-se as principais instituições bancárias portuguesas, e, do outro lado, como compradores, um grupo restrito de fundos de investimento internacionais e gestores de ativos, que operam frequentemente através de sociedades de servicing estabelecidas em Portugal. A estrutura opaca de muitos dos compradores e, por vezes, a sua sede em jurisdições fiscalmente offshore, acentuam as preocupações sobre a falta de transparência e a otimização fiscal. Para os devedores com crédito à habitação, a venda do seu empréstimo significa a anulação do "direito de retoma", ou seja, a possibilidade de regularizar as prestações em atraso e retomar o contrato, mesmo após a sua resolução pelo banco. Este direito, consagrado no Decreto-Lei n.º 74-A/2017, deixava de ser aplicável porque o novo credor não é uma instituição de crédito habilitada a "retomar" um empréstimo.32 Na prática, a venda do crédito funciona como uma sentença de execução da dívida e, potencialmente, da casa. Perante a inação do legislador, foi o poder judicial a colocar o primeiro travão a estes abusos. Em dois acórdãos históricos, proferidos em 2024 e 2025, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) declarou nulas as vendas de créditos à habitação a entidades não supervisionadas sediadas no Luxemburgo. O raciocínio do STJ foi claro: uma vez que as entidades adquirentes não eram instituições de crédito, eram legalmente incapazes de assegurar os direitos imperativos do consumidor, como o direito de retoma. Portanto, a cessão do crédito, embora aparentemente legal, tinha como resultado contornar uma norma de proteção obrigatória. O tribunal classificou a operação como uma "fraude à lei", um ato nulo por visar um resultado que a lei proíbe. Com a transposição da Diretiva (UE) 2021/2167, através do Decreto-Lei n.º 103/2025, o BdP passa a ter competência para autorizar, registar e fiscalizar as entidades "gestoras de créditos" que atuam em nome dos fundos adquirentes. Mas não é suficiente. O argumento de que se trata de um negócio privado de "livre iniciativa" ignora uma sua dimensão: o risco sistémico do setor bancário garantido pelos contribuintes. Quando os bancos foram resgatados com fundos públicos, foi o contribuinte quem suportou o custo da má gestão de ativos que levou à acumulação de NPL. No entanto, os lucros gerados na "limpeza" desses mesmos ativos são inteiramente privatizados por fundos de investimento, muitas vezes sem o devido escrutínio fiscal. Este ciclo criou um negócio perverso, na qual o risco é socializado e o lucro é privatizado. É tempo de acabar com a negociata. A utilização documentada de veículos de investimento sediados em jurisdições como o Luxemburgo, como nos casos analisados pelo STJ, alimenta a suspeita de planeamento fiscal agressivo. A estratégia de realizar vendas sucessivas das carteiras de crédito entre diferentes entidades do mesmo grupo, localizadas em diferentes países, é um método conhecido para transferir os lucros para jurisdições de baixa tributação, erodindo a base fiscal em Portugal. O Decreto-Lei n.º 103/2025 representa um avanço inegável. Contudo, a regulação foca-se em gerir as consequências da venda, não em reequilibrar a transação em si. O devedor continua a ser um espectador passivo num negócio que decide o seu futuro financeiro. A nova lei cria uma indústria de compliance, profissionalizando e legitimando um modelo de negócio que, na sua essência, continua a ser eticamente questionável. O debate deixa de ser sobre se é moralmente defensável transacionar dívidas de famílias e empresas como um ativo especulativo, e passa a ser apenas sobre se as regras estão a ser cumpridas.

É neste aspeto que se torna imperativo considerar reformas mais profundas:

1. Direito de Preferência para o Devedor: A proposta mais transformadora seria conceder ao devedor o direito de adquirir a sua própria dívida pelo mesmo preço com desconto oferecido a um fundo de investimento ou indicar quem a iria adquirir.

2. Transparência Total sobre o Preço de Cessão: É crucial que o preço de venda do crédito deixe de ser um segredo comercial. A sua divulgação deve ser obrigatória, pelo menos em sede de processo judicial, expondo as suas margens de lucro e permitiria aos tribunais avaliar a proporcionalidade das ações de cobrança.

3. Limitação das Margens de Lucro: Imposição de um teto máximo ao valor que pode ser recuperado pelo credor cessionário (por exemplo, o preço de compra acrescido de uma margem legalmente definida).

4. Direito de Oposição à Venda: O devedor que contratou um empréstimo a uma instituição financeira, deve poder opor-se à cessão que será ineficaz sem o seu consentimento.

Em suma, a regulação foi um passo necessário, mas insuficiente. Ou se acaba de vez com este tipo de operações especulativas, que apenas beneficiam os adquirentes; ou se regula o negócio de forma rigorosa.

Advogado e sócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados

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