O Mali, um país vastíssimo e um mosaico de culturas, está a dois passos da Europa e a um passo do colapso enquanto Estado. No início da semana, o presidente da Comissão da União Africana, Mahmoud Ali Youssouf, lançou um apelo dramático à comunidade internacional – uma expressão cada vez mais vaga nos tempos de agora – para que se evite a queda do país no caos absoluto. Expressou uma enorme preocupação perante a expansão acelerada dos diversos grupos terroristas, cujas atividades assentam em dois pilares – o fundamentalismo étnico-religioso e a criminalidade organizada. A administração do Estado e as forças de segurança controlam apenas uma fração reduzida do território. O resto, incluindo o norte, o centro e os arredores da capital, Bamako, são zonas de operação dos grupos armados. Uns estão filiados à teia de aranha terrorista conhecida por Al-Qaeda ou ao autodeterminado Estado Islâmico, outros ainda têm sobretudo uma base étnica, tuaregues e árabes contra as populações bantus do sul.O financiamento das ações terroristas é grandemente de origem doméstica. Inclui a exploração artesanal de ouro, depois vendido a organizações russas, metamorfoses do famoso Grupo Wagner. Suspeita-se que passe pelo importantíssimo mercado de ouro do Dubai e seja aí convertido em divisas que seguem depois para a Rússia. Os russos alinharam-se com os militares golpistas depois de dois golpes militares (2020 e 2021) e conseguiram expulsar a presença francesa e a missão de paz da ONU (MINUSMA). Mantêm, igualmente, contactos indiretos com as rebeliões e com os traficantes que operam no Golfo Pérsico.A imposição às populações de taxas sob pretextos religiosos, os raptos de nacionais abastados e dos poucos estrangeiros que ainda circulam nas regiões afetadas, o controlo das principais estradas, que só são praticáveis por quem pague para transitar com vida e aceite só ficar com uma parte das mercadorias que leva, o roubo de gado, tudo isso alimenta igualmente os custos da violência. Depois, há a questão das drogas: o Sahel, de que o Mali faz parte, é um dos corredores entre a América Latina e a Europa. No Sahel, o comércio da droga compra governos e rebeldes. E as drogas entram no nosso continente pelos pontos mais fracos, onde os meios de controle e de segurança são insuficientes e a governação política é mais desatenta, como é o caso do Algarve, entre outros.Há ainda o tráfico de pessoas, de migrantes que vêm de toda a África Ocidental com destino à Europa, mais o contrabando de combustíveis, tabaco e armas. É tudo dinheiro em caixa, em terras sem rei nem roque. As escolas não funcionam, com exceção das madraças dirigidas por fanáticos ignorantes, não há emprego para os jovens nascidos de uma explosão demográfica imparável. A kalashnikov tornou-se o ganha-pão possível.Youssouf pede uma resposta robusta contra o terrorismo no Mali e na imensidão do Sahel. É uma chamada de atenção plenamente justificada, mas que cairá em orelhas moucas. O Conselho de Segurança da ONU, depois da saída forçada da França da região, da expulsão da MINUSMA e da crescente influência dos russos de Vladimir Putin, varreu a região para o canto dos esquecidos. Os europeus, que contavam com regimes clientes no Mali, no Níger e no Burkina Faso, com governos que recebiam fundos de Bruxelas para travar os movimentos migratórios, deixaram-se ultrapassar por Moscovo. Putin compreende que o caos no Sahel tem um impacto negativo desmedido na vizinha Europa. Significa para a Europa mais imigrantes, mais drogas, mais insegurança e uma perda colossal em matéria de influência geopolítica no Sahel.Trabalhei vários anos na região. Conheci um Mali e os países vizinhos que eram capazes de produzir grandes intelectuais e de tratar dos assuntos da governação de modo sério. Essa era a geração que havia crescido no período pós-colonial. Muitos deles deixaram o país, recrutados pelas organizações internacionais. Outros emigraram para França, para ensinar nas grandes escolas, ou para o Canadá, um país que abria facilmente as portas aos universitários de língua francesa.Já existiam, então, movimentos de rebeldia, porque certas etnias e as populações das regiões mais remotas se sentiam ignoradas pelo poder central dos seus países. Os conflitos mais graves envolviam os que viviam da pastorícia e os da agricultura. Era uma competição entre dois modos de vida dificilmente compatíveis naquelas terras áridas. Mas conseguia-se encontrar soluções. Como também era viável ter encontros com os chefes rebeldes, e com eles negociar. As Nações Unidas e eu, como enviado da organização, éramos tratados com respeito e moderação.Nos últimos 15 anos tudo mudou. Os extremismos religiosos, as diferentes formas de criminalidade, a corrupção da base até ao topo nesses Estados, o crescimento demográfico incontrolado, acompanhado pelas mudanças climáticas, incluindo com o harmatão, o vento seco dos desertos, a estender-se cada vez mais na região, e a escassez das chuvas, e com a hostilidade promovida pelos países do Golfo e pela Rússia contra as ideias democráticas, tudo isso criou uma situação extremamente complexa. E nós, os europeus, apenas nos lembramos do Sahel quando vemos os filhos dessas terras a vender bugigangas nas nossas praias e esplanadas, ou a ser por cá atacados pelos partidos da xenofobia, do ódio e do racismo. É razão para perguntar por onde anda a estratégia geopolítica da UE.Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU